Este calor de rachar requer
umas Memórias mais leves, que sugiram alguma fresquidão. Talvez um saltinho até
ao mar.
«Olh´a bolinha! É a Depuralina da praia. Alarga, mas
não engorda.»
Foi ao som deste bem-humorado
pregão que, um dia destes, despertámos da soneca dormida na praia. O apelativo
slogan do vendedor das bolas de Berlim fez accionar em nós o detonador da
memória, provocando uma explosão de pequenas recordações. Ás duas por três,
demos connosco a repescar outros sabores da beira-mar e uma miscelânea de
pregões, muitos deles do tempo da nossa infância e adolescência. «Há a língua de sogra! É p´ra adoçar a
boquinha! Rajá fresquinho! Há frut´ó chicolate!...»
Por momentos, pareceu-nos ver
na nossa frente a vendedora de bolos, de caixa branca de madeira à cabeça, com
os bolinhos compartimentados em gavetas. Fantasia a mais! Talvez tivesse sido
algum raio de sol mais fulminante que nos tenha perturbado os sentidos. Talvez
uma miragem!
Voltámos de novo à realidade para
ouvir o rugido do mar, ver o desabar contínuo das ondas, comtemplar o oceano
ilimitado que se estendia diante nós. Os gestos tímidos de alguns banhistas a
entrar na água e a chilreada das crianças brincando pareceram-nos iguais aos de
sempre. Até os pardais dos telhados vadios ainda não perderam a vergonha,
afoitando-se a vir debicar migalhas de pão e bolos que as pessoas deixam cair
na areia. Falta, isso sim a bola Nivea gigante que nos servia de referência
quando nos perdíamos, o tagarelar dos fantoches, esgrimindo palavras e pauladas
em barraquinhas de pano, rodeados pelos olhos arregalados e felizes de miúdos e
graúdos.
Cerramos os olhos durante
mais uns minutos, debaixo do colmo número 41 da fila da frente da área
concessionada. Os colmos são cada vez mais, os substitutos dos velhos toldos de
lona, assemelhando-se a cogumelos cobertos de um palhuço mais ou menos escuro.
Antigamente, havia toldos, barracas, chapéus-de-sol, mas eram muitos os que
aproveitavam os barcos de pesca para se resguardarem do sol e do vento e
comerem um bom arroz de tomate com
joaquinzinhos fritos. No areal de muita praia, era frequente verem-se
embarcações com as proas em forma de meias-luas apontando ao céu, prontas para
oferecerem o peito às ondas. Havia também barcos mais pequenos, com o fundo
chato voltado para cima a servirem de abrigo. Hoje, são cada vez menos os
barcos e os pescadores.
Pusemo-nos, entretanto a
fazer o périplo pelas praias que marcaram o tempo da nossa infância e da
adolescência: Setúbal, Sines, Ericeira, Caparica…
A Costa da Caparica foi, em
tempos, lugar eleito de reis e rainhas, gente rica e intelectuais como espaço
de veraneio. Acreditava-se no poder curativo dos ares do mar e da água salgada.
Ainda há boas razões para se acreditar.
O hábito de ir à praia foi-se
vulgarizando e actualmente as praias da Costa acolhem meia Lisboa e milhares de
outras pessoas que buscam o sol e as ondas. Com a moda do Algarve criou-se a
idéia que a Caparica já não serve para gente “fina”. Se o Dr. Gabriel, nosso
ilustre professor de línguas, ainda cá estivesse, havia de dizer “vocês têm é mania!”.
Nas décadas de 50 e 60, para
se ir de camioneta até à Caparica, era preciso um tempo infinito. As camionetas
paravam em todas as capelinhas. Depois de Montemor, seguiam-se Vendas Novas,
Pegões, Águas de Moura, Setúbal, Azeitão, Fogueteiro, Cova da Piedade,
Cacilhas…isto só para falar de algumas paragens mais importantes. Em Águas de
Moura esperava-se muitas vezes uma eternidade, à espera de desdobramento ou de
carreiras oriundas doutros destinos. Os adultos tinham redobrados cuidados com
a rapaziada, ainda assim não fosse algum catraio saltar da camioneta e
atravessar incautamente a estrada, considerada movimentada perigosamente.
Setúbal fazia.se anunciar pelo cheiro característico da indústria conserveira.
Chegou a haver ali dezenas de fábricas de conservas de peixe. A cidade do Rio
Azul e berço de Bocage era também ponto de paragem demorada, Camionetas dentro
entravam vendedores de fruta ou de copos e barquinhos com doce de laranja,
especialidade de Setúbal.
Em Azeitão, sede da empresa
transportadora. Parava-se alguns minutos para abastecer depósitos e, quando se
chegava `Piedade, sentia-se já o hálito fresco da maresia. Para quem ia da
província, Cacilhas era um outro mundo. Existia ali um fervilhar diferente. Do
cais via-se o Tejo majestoso, o vai vem dos cacilheiros e, do outro lado, o
cenário deslumbrante da velha Lisboa. Se houvesse tempo, comia-se numa das cervejarias
ou tascas do lugar, e era tempo de passar com armas e bagagens para outras
camionetas azuis e prateadas que nos levariam ao destino final. O caminho
fazia-se frequentemente pelo Monte a Caparica, cheio de curvas e contra curvas.
Dos pontos altos avistava-se a barra de Lisboa e também o recorte inconfundível
da Serra de Sintra.
Estávamos quase a chegar à
Costa da Caparica! A ansiedade de chegarmos à praia quase não nos deixava
apreciar a paisagem. De um lado as falésias, como se fossem um imenso paredão,
em tons de ocre; do outro lado, valas de água, um mata de pinheiros mansos e
arbustos. Atrás deles, adivinhava-se o imenso areal e o ma. Consta que esta
área foi em tempos, uma zona pantanosa coberta de juncos, onde se fez algum
cultivo de vinha e arvoredo.
A designação Caparica sempre
nos intrigou. De entre as várias versões que lemos ou ouvimos contar, vamos
sumariamente uma delas, que tem sabor a lenda e que nos pareceu particularmente
interessante.
Diz-se que uma miúda, que
andava pelo mundo sem eira nem beira, veio ali parar. Num dia de calor, ao fim
da tarde, a rapariga pôs-se a olhar fixa e calmamente a bola de fogo que
mergulhava no mar. Com o cair da noite, a miúda sentiu necessidade de se
embrulhar na sua humilde capa e ali ficou até ao romper do dia. Um velho que a
observava já há algum tempo, convidou-a para viver com ele em sua casa e para
lhe ensinar outras coisas do mundo. Assim foi. Ali viveram os dois com as
coisas que a natureza lhes dava. A miúda foi crescendo e o homem envelhecendo.
Um dia o velho sentiu muito
frio, um frio de morte, e pediu que a rapariga o cobrisse com a pobre capa.
Adormeceram os dois, e quando ela acordou, apercebeu-se de que nunca mais
voltaria os dois a contemplar o sol.
Sozinha de novo, os anos
passaram e a miúda passou a chamar-se mulher. As pessoas começaram a olhar para
aquele ser diferente, estranhamente solitário, como se fosse uma bruxa. O
desconhecido, o diferente, sempre incomodaram muita gente! Chegaram a ir fazer
queixa ao Rei, que quis visitar a mulher e conhecer a sua história.
Certo dia a mulher morreu e
deixou ao monarca a velha capa cheia de ouro, que o velho sem saber, lhe
deixara, para que todas as pessoas pudessem ter tudo aquilo de que mais
necessitassem.
Afinal a capa pobre
transformou-se em capa rica.
A costa e as suas praias levam-nos
a um mundo sem fim. Nos anos 50, princípio da década de 60, lá em casa havia o
hábito, sempre que era possível, de irmos todos passar umas férias na FNA.
Segundo sabemos, foi a primeira Colonia de férias daquela Federação a ser
construída de raiz, tendo a escolha do local recaído na Mata da Caparica. A
inauguração teve lugar em 1938 (ainda não eramos nascidos), e o projecto foi
pensado para ser “uma cidade de férias”, antecipando a ideia relativamente
recente de “turismo de massas” ou “turismo para as massas”. Pelo que sabemos
foram os Sindicatos Nacionais dos Bancários, Seguros, Músicos e Empregados do
Comercio que, em 1934, propuseram ao governo de então a criação de um espaço de
férias e repouso para os seus filiados.
O empreendimento começou com meia
dúzia de pavilhões. O sucesso foi tal, que nos anos 50, já eram cerca de
quarenta os pavilhões existentes, prontos para receber mais de 1500
trabalhadores e suas famílias.
“Costa da Caparica, um lugar ao sol”. A idéia era luminosa, embora houvesse muitos que, de
sol a sol, só soubessem o que era trabalhar.
A Colónia era bem a expressão
da doutrina corporativista do Estado Novo. Cada sector de actividade tinha as
suas próprias instalações. Cada macaco no seu galho. Bancários para um lado,
Seguros para outro, Empregados do Comércio para outro, e assim
sucessivamente…até os solteiros e as solteiras tinham dormitórios separados.
Vista à distância de muitos
anos, aquela arrumação tinha o seu quê de medieval, a fazer lembrar algumas das
mais antigas ruas de Lisboa e de outras vilas e cidades: Fanqueiros,
Correeiros, Douradores, etc.
Filosofias de vida e
políticas à parte, certo é que guardamos belíssimas as recordações daquele
espaço de lazer: os beliches onde a rapaziada mais nova dormia, o cheiro dos
pinheiros e os baldes cheios de pinhão, as idas à praia pelo carreirinho
alcatroado, as primeiras avarias de bicicleta e patins, as jogatanas de bilhar
e ping -pong, as matinés com ilusionistas e palhaços, o pé de dança ara os mais
velhos, um nunca mais acabar…
Guardámos para o fim os
passeios à noite, até à vilav da Costada Caparica, ás esplanadas de Santo
António e Valverde. Habituados que estávamos em Montemor, aos pirolitos, ás
gasosas Serra D´Ossa e aos cubos gelados da pastelaria Nina, era altura de nos
desforrarmos a beber Laranjina C, Sumol, Buçaco, Fruto Real, Canada Dry. Outras
vezes antes que derretessem, comíamos à pressa pirâmides de sorvetes coloridos,
dentro de enormes cones de bolacha.
Bem! Basta de refrescos e
gulodices. Se o estimado leitor já se sente um pouco mais aliviado do calor,
valeu a pena o discurso.
Até Setembro
Vitor Guita.
In Montemorense- Julho 2017
Transcrição
autorizada pelo Autor
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