quinta-feira, 22 de junho de 2017

AS MEMÓRIAS DO HELDER

         Ainda na sequência da recordação (homenagem ao tio Zé Godinho)

                                                                A vida na casa
Esta casa encerra algumas tradições, que começaram a cair em desuso como as matanças, a criação de perus, a venda de ovos e a criação de frangos.
Lá estava a grande chaminé à direita da entrada da casa, para corar a carne e à esquerda o poial dos cântaros de barro, do Redondo ou da aldeia de Mato, com água sempre fresca do poço ou da nora. Esta nunca secava e por meio de um canal feito de tijolo burro alimentava um tanque, que por sua vez servia de reservatório para rega da horta.
Nunca mais esquecerei aqueles figos, abebera real, nem as passas que a esposa do tio Zé, a tia Gertrudes Pateira fazia dos figos.
 As conversas com o Zé Godinho.
Numa tarde em que o visitei, vindos da horta, passámos à eira, quadrado cimentado tendo no rebordo pedras da região, semelhantes às da construção da casa e vendo ainda os cachos, não de uva mas de favas, perguntei-lhe quantas sementes tinham dado.
- Catorze sementes e no trigo quinze - disse o tio Zé.   
- Boa colheita - respondi.
- Boa, muito boa mesmo - retorquiu o tio Zé com um entusiasmo que até aí, não lhe conhecia. Um contentamento gratificante de quem vê recompensado o seu trabalho pela natureza, que o tio Zé também fazia parte.
As conversas que tínhamos no Verão, à sombra da casa ou da mimosa que lhe estava em frente ou de Inverno ao lume não se afastavam muito dos trabalhos agrícolas.
Uma noite de frio inverno, à chaminé, frente ao lume onde se assavam umas bolotas, um apetecível magusto, o tio Zé Godinho foi buscar a harmónica de beiços, que ele tocava maravilhosamente, e como eu um dia lhe tinha feitos uns versos que não acreditou que fosse eu, no meio da música, veio-me à ideia este verso:

Um dia por meu azar
Fiz uns versos ao Zé Godinho
Ele não quis acreditar
Que fiz os versos sozinho.
                                                                                                                                
Também não acreditou, dizendo que o ouvira nalgum lado.
Além de tudo isto que tenho vindo a relatar e que faz a minha admiração por este homem é a habilidosa maneira como ele fazia os cigarros. Duma onça de tabaco superior tirava um pouco de tabaco, molhava os dedos e a mortalha de papel com saliva e enrolava o cigarro com uma rapidez e perfeição, que me impressionou até hoje o recordar.
Fora um excelente cavaleiro e concorria com o seu cavalo vermelho às cavalhadas, jogos que consistiam em ir galopando, a partir de uma meta e em corrida partir uma panela de barro, cujo prémio estava dentro da panela. Por vezes as panelas estavam cheias de farinha, que caia em cima do cavaleiro, muito embora houvesse prémios que se componham de chouriços e frangos. O nosso homem ganhou muitos prémios.    
Como já disse o tio Zé Godinho não vive no Monte, vive na sua casa em Terena, mas as nossas conversas continuam, como continua a sua descrença nos meus versos, em contrapartida fica muito admirado com o que escrevo em prosa.
Teimoso o homem? Não, por favor não pensem assim, porque quando ele diz que não sou eu que faço os versos, eu confirmo e digo que quem os faz é o Hélder e depois de uma pausa de silêncio interrogativo, surgem sorrisos de confiança mútua.
Com esta negação, julgo eu, pretende que lhe vá levando o que escrevo, tendo assim uma distracção de que tanto necessita pelo estado em que se encontra.   
Como ele delirou com o Bota cá Licença que o fez, por momentos, regressar à sua juventude. O seu contentamento foi tanto que até tocou uma pecita, na sua velha harmónica.
 Os noventa anos do Zé Godinho.
Quando fez noventa anos, hoje tem noventa e um, fiz-lhe umas quadras, que foram, devido à emoção e às lágrimas, a excepção à regra da descrença.
 Amigo
 Na frase que a seguir te digo
Dou-te os meus parabéns
Estou feliz por estar contigo
Noventa anos já tens

Quantas festas e arrais
Na vida terás passado
Com alegria e ais
Sem nunca te mostrares cansado

Desta vida deste mundo
Da terra que Tu tiveste
Nesse cantinho profundo
Um exemplo Tu me deste

Com todo o gosto eu segui
Por seres um Homem honrado
E por hoje estou aqui
Como ontem estive a teu lado.

E são noventa, noventa
Tantos dias, tantas horas
Vê lá se Te aguentas
Pois não quero que chores agora
Que própria não é o dia
Mas se Te escapar uma lágrima
Que ela seja de alegria. 

Já disse que o tio Zé está preso, qual pássaro livre agora engaiolado, a um aparelho de oxigénio, como está ávido de ter visitas e de distrair, por isso visitando-o lhe levo alguma prosa e versos.
Levei-lhe o texto Um dia com o Zé Borrão, mais uma vez se comoveu.
Da última vez que o visitei falámos em poesia, na subtileza que o autor se serve para chamar ou dizer, por palavras diferentes a realidade das coisas.
Não acreditou que em poesia, uma rosa, pode ser uma flor ou uma mulher.
- Uma flor é uma flor, uma mulher é uma mulher e uma rosa é uma rosa, - disse peremptoriamente.
- Oh tio Zé, uma flor é uma rosa e Rosa é nome de mulher, então porque é que mulher não pode ser flor? - riu-se dizendo - Lá está vossemecê a atrofiar-me, - fazendo-me rir também.
Dessa discussão nasceu, especialmente para o tio Zé Godinho, este versos.

ROSEIRA BRAVA 

Colhi da roseira brava
Uma flor de jasmim
Toa bonita, tão cheirosa
Perfumada só para mim
O seu cheio me inebriava
E a dançar cantava assim

Sou a rosa bem formosa
Criada sem ter jardim
Bonita sem ser vaidosa
Deixa-me ficar assim”

Olhei para a Rosa e fiquei
Preso naquela visão
Quis cantar então chorei
Apertou-me o coração

“Sê livre, flor, sê livre
Eu vou deixar-te voar
Da liberdade que não tive
Eu não te devo privar
                                                                                                                                   
E a flor me perfumou
A palma da minha mão
Comigo também dançou
Contente por lhe dar razão

Quem és tu Roseira Brava
Perguntei-lhe impressionado

Sou mulher, Rosa encantada
Cumpro contigo o meu fado
Do pouco que foi sou nada
Do muito que dantes era
Sou flor de Primavera

E eu fiquei a pensar
Meditando neste encanto
Flor e mulher vida dão
Não as quero no meu pranto
Nem dentro do meu caixão
Uma Rosa é para amar
E só me resta chamar
Florbela, Conceição

- Essa aí da Florbela Conceição..., mas diga lá a verdade não foi Você que fez os versos - e lá veio o tal sorriso.
 O tio Zé Godinho está preso, não por fazer mal a alguém, nem por cometer algum crime, está preso porque o destino assim o decretou.
É nestas alturas que Deus ou o Além, o Divino ou a Previdência, põem à prova a capacidade de resistência de ânimo das pessoas. Zé Godinho, embora por vezes as lágrimas lhe avermelhem os olhos, não desanimou e continua a contar-me as facetas mais interessantes da sua vida, da ruralidade em que sempre viveu, das suas sementeiras e colheitas, 
do mistério que encerra o romper da aurora e o pôr do Sol, acrescido pelas maravilhosas melodias do chegar dos animais ao redil, do miar do gato e do ladrar do cão, de tudo isto em que o tio Zé Godinho foi um excelente interprete, tudo isto encerra o seu Monte, tudo isto simboliza aquela Casa, uma casa no meu Concelho, uma Casa no Alandroal.
Assim eu continue por muito mais tempo a ouvir as negações do tio Zé Godinho.

Hélder Salgado
17Novembro2011




1 comentário:

Anónimo disse...

Gostei, Hélder!