quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

MEMÓRIAS CURTAS

recordações do passado Presentes na memória do Prof Vitor Guita.

Estas nossas Memorias do mês de Novembro poderão parecer, à primeira vista, um tanto ou quanto mórbidas. Saiba, porém, estimado leitor, que não nos move qualquer sentimento fúnebre. Muito longe disso. Deixámo-nos simplesmente conduzir pelo calendário, que apontou para o dia 1 de Novembro, e tudo o mais veio por arrastamento. Recordámos coisas nunca escritas, dessas que não vêm nos livros, memórias pessoais que são, algumas delas, memórias colectivas. Corremos o risco de não saber o percurso exacto que iríamos trilhar nem onde iríamos desaguar, o que não deixou de ser estimulante.
Tudo começou na véspera do dia de finados. Como aconteceu seguramente com centenas de montemorenses, fizemos a nossa habitual romagem aos cemitérios da cidade. Detivemo-nos mais demoradamente no da Carreira de S. Francisco, que, pela sua antiguidade, é mais propício a recordações. Além disso, é lá que repousam os nossos entes mais queridos.
Em vez de uma manhã tristonha, sonolenta, tipicamente outonal, o dia rompeu deslumbrante. Em nossa opinião, demasiado luminoso e quente para esta época do ano.
Saímos cedo de casa em direcção a S. Francisco. Dum lado e doutro da porta principal do cemitério, alinhavam-se os vendedores de flores da época, especialmente de crisântemos roxos, brancos, amarelos, alguns com pétalas já meio esgadelhadas. Ali perto, o homem das farturas, e a mulher das castanhas espreitavam a sua oportunidade de fazer negócio.
Estivemos ali alguns instantes observando o vai vem de carros e pessoas, ao mesmo tempo que fomos remoendo memórias distantes, nomeadamente a do coro de gente pobre que, numa voz suplicante, costumava vir ali pedir esmola. Os peditórios, agora, têm outros contornos.
No interior do cemitério, percorremos o vasto labirinto de campas apinhadas, o que nos obrigou, nalgumas zonas, a fazer vário exercícios de equilibrismo e contorcionismo.
Desde os tempos da infância que, na véspera de finados, cumprimos o ritual de visitar um número significativo de sepulturas, em especial as que sempre mais impressionaram os nossos sentidos. É o caso da campa onde jaz Lipo Herczka, o prestigiado treinador húngaro que, em tempos, orientou a equipa do União. Os emblemas dos grandes clubes por onde o mister passou continuam intactos, e a bola de pedra contínua estática sobre o rectângulo de mármore, com a mesma imobilidade de há mais de sessenta anos.
Faz parte do nosso ritual visitamos outros monumentos fúnebres, umas vezes atraídos pela beleza poética dos epitáfios, outras pelo simbolismo das esculturas: imagens religiosas, ferramentas das mais diversas profissões, alfaias agrícolas…
Numa dessas campas aparece esculpida uma junta de bois puxando um arado, a indicar ligações da família jacente à agricultura.
Impressionante é o Senhor dos Passos, logo à entrada, que nos parece cada vez mais cansado. Será de coabitar com os mortos ou da incorrigibilidade dos vivos?
As ruas dos jazigos são ponto obrigatório de paragem. Costumamos demorar-nos por ali, apreciando os mais diversos elementos decorativos, que vão do estilo gótico ao neoclássico, até chegar às linhas directas dos tempos modernos. Quando se espreita para o interior de alguns deles, já só o tempo parece ali habitar.
Este tema dos finados traz-nos frequentemente à lembrança várias histórias. Uma dessas narrativas, meio rocambolesca ou mesmo a atirar para o humor negro, foi passando de boca em boca, de geração em geração de montemorenses. Referimo-nos ao episódio ocorrido, há muitos anos, com a figura popular de José Roque, a quem poderíamos apelidar de “o morto-vivo”.
Ainda guardamos a imagem, embora difusa, do homem que serviu os Pereira Rosa, uma das casas ricas de Montemor. Conseguimos revê-lo no alto da Rua Nova ou nas proximidades do mercado, com uma espécie de bibe axadrezado atado à cintura, como era habitual nas famílias abastadas da vila. Se a nossa memória não nos atraiçoa, José Roque, costumava trazer um barrete preto enfiado na cabeça. Estivemos à conversa há dias com Urias Roque, seu sobrinho, que nos ajudou a avivar o perfil do familiar e a avivar as peripécias de que ele foi protagonista.
Para o Zé Roque (era assim que ele era tratado) a pinga era a sua perdição. Consta que, certo dia, a embriaguez era tamanha que no hospital o deram como morto. Foi, depois, envolto dos pés à cabeça num lençol e colocado na pedra fria da casa mortuária. A notícia espalhou-se pela vila: “ Morreu o Zé Roque! “.
Milagre ou talvez não, durante a madrugada o suposto defunto veio a si, libertou-se das amarras que lhe tolhiam os movimentos, abriu a porta, atravessou a rua larga e foi direito à taberna do Alcácer com o sentido numa cachaça. Nesse tempo, as tabernas abriam cedo, já que muita gente trabalhava de sol a sol.
Agora, imagine-se o ar incrédulo e apavorado do taberneiro, que já saia da “morte” do freguês e viu entrar porta adentro, a desoras, aquele vulto espectral!
Disse-nos o amigo Urias que, durante muito tempo, o dono da taberna não queria ouvir falar no Zé Roque. Nem pensar!
Esta e outras histórias do género não têm por objectivo apoucar seja quem for. É antes, uma forma de dizer que todas estas pessoas estão bem vivas na nossa lembrança e que nem só de figuras ilustres se compõe a vida das comunidades. Também cabe no livro das recordações as pessoas simples, as coisas triviais que fazem parte do nosso imaginário. Não se trata de nostalgia, mas de mmória.
Já que fomos por aqui, deixe-me dizer-lhe, amigo leitor, que a nossa cabeça está povoada dessas figuras populares. Escolhemos ao acaso, mais uma dessas personagens, de que os montemorenses mais antigos se recordarão. Chamavam-lhe “Velho Pão Mole” e impressionava pelo seu aspecto agreste, pela sua cara de mau.
Muitos lembrar-se-ão do homem que costumava vagabundear pelas praças e ruas da vila, sem casa nem destino certos. Usava chapéu escuro e gasto, pala a cobri-lhe um dos olhos, manta às costas e empunhava habitualmente um cajado.
Esta figura, que correspondia à imagem que tínhamos de um maltês, foi-nos sempre referida como uma espécie de papão, principalmente quando fazíamos as nossas travessuras lá em casa ou nos recusávamos a comer os nabos, as couves e outra hortaliça. “Se não comes tudo, vou chamar o Velho Pão Mole”. Foi graças a ameaças deste tipo que conseguimos fortalecer o nosso complexo vitamínico.
O Pão Mole não era mais do que um desses deserdados da sorte, a quem atribuem famas terríveis. Em muitos casos, tratava-se de gente boa que a sociedade enjeitou.
Um amigo nosso, que viveu grande parte da sua vida num dos moinhos do Almansor, contou-nos que o velho aparecia frequentemente ali pra o lado da ponte de Lisboa, mendigando uma falca de pão e pedindo que o deixassem dormir dentro do forno, ainda tépido, em dias de cozesura. Para o velho Pão Mole, o moinho e o forno eram, nas noites frias, o seu palácio encantado!
Bem o espaço e o tempo da escrita estão a expirar. Até breve
Vitor Guita
In “O Montemorense” – Novembro 2016
Transcrição autorizada pelo Autor



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