quinta-feira, 25 de agosto de 2016

LUGAR À CULTURA

                             Textos do Dr. Alexandre Laboreiro
                           A Cultura e a Sociedade
«Só é livre o homem que liberta.»
 Manuel Alegre
(in “Uma outra memória”)

Em artigo de opinião, inserido no jornal “Público”, Guilherme Valente antepõe a premissa de que «A escrita não é uma mera representação do idioma. Nem é uma arbitrariedade. Tem uma lógica, uma história, uma função, valor e importância inestimáveis. A gramática, a sua nomenclatura e terminologia também não podem ser o “tricot” com que os nossos linguistas alteraram recorrentemente os programas de Português. Talvez para fazerem passar por avanços da ciência o que na realidade o não é. Mas a gramática e a sua nomenclatura têm também uma lógica e uma história.
Do mesmo modo que os Jerónimos ou a Batalha também não são a construção de lego com que uma criança possa brincar, ou mamarrachos que se possam alterar ou destruir à vontade. Nem a obra “Os Maias” pode ser trocada por uma versão facilitista, idiota dela. De facilitismo em facilitismo, de simplificação em simplificação, é inteligência que se atrofia e que matam. A língua, organismo vivo, enriquecível pela interacção inevitável das culturas, não deixa de ser por isso a herança matricial que é, que tem de ser cuidada, ensinada e amada  -  escola é, sempre, a palavra-chave. Por isso, a escrita, que reflecte essa natureza  da língua, pode e deve ser actualizada. Mas no seu tempo e com critério, tocando-se nela com precisão cirúrgica, sem ferir a sua lógica, sem quebrar o fio agregador da sua origem e da sua história. Porque tal como todos os outros elementos que referi, tal como a História, é constitutiva e constituinte de uma identidade humana, que é, na sua universalidade, singular. Porque tudo o que somos, pensamos ou fazemos é resultado de uma cultura, isto é, “de uma compreensão do mundo historicamente adquirida”. Que devemos assumir e nos devemos orgulhar ... Não há Nação sem língua, sem escrita, sem escola. Sem memória, sem História, sem afectos. Que só o conhecimento pode gerar. Sem herança imaterial  e material, que se ensine e se aprenda a reconhecer, a compreender, a valorizar criticamente a continuar. A amar. Não se nasce português, ou francês, ou chinês; qualquer um de nós, ser biológico, poderia ter nascido num lugar qualquer. E seria desse lugar. É-se verdadeiramente português, mais português por se querer ser Português. Wenceslau de Moraes, por exemplo, escolheu ser japonês, e foi tão japonês, mais japonês, seguramente, do que muitos japoneses. Portugueses de Macau, como eu os conheci, mesmo sem nunca terem vindo a Portugal, são mais portugueses do que inúmeros cidadãos portugueses que aqui nasceram, cujos antepassados viveram desde sempre em Portugal.»
Ora, para Manuel António Pina, a alma dos povos, como a alma dos homens, precisa de horizontes largos e irrealizáveis, e nos últimos tempos a nossa alma colectiva foi metodicamente aprisionada nos limites da Balança de Pagamentos e de um montão de siglas sonoras e indecifráveis, e corrompida pelo comércio e pela usura. Como no “Admirável Mundo Novo” de Huxley, palavras como solidariedade e igualdade caíram em desuso e tornaram-se obsoletas e desprezíveis; e mesmo ideias imensas como a de liberdade foram reduzidas às dimensões mesquinhas do mercado. A grandeza, para os liberais profetas do sucesso, corresponde, mais ou menos, ao volume da “facturação” e dos resultados líquidos, e uma mecânica legião de economistas e de gestores atarefa-se monocordicamente em convencer-nos de que a felicidade é a mesma coisa que taxas de juro baixas  -  segundo António Pina nos alerta em “Crónica, Saudade da Literatura”.
Ora, é neste contexto que Manuel Alegre  -  indo de encontro à exortação de José Saramago, ao defender que «ser escritor não é apenas escrever livros, é muito mais uma atitude perante a vida, uma exigência e uma intervenção»  -  o Poeta da “Praça da Canção” e do “Canto e as Armas”, dizíamos, se interroga: «Para que servem os poetas em tempo de indigência?» E responde: é para isso que servem os poetas  -  para escrever poesia. Cada poema que se escreve é uma derrota da indigência, seja ela cultural, ética, política, ou mesmo literária. Uma derrota da indigência, e da regressão civilizacional que estamos a viver.
E, para Manuel Alegre, cada poema  -  independentemente do seu conteúdo  -  é um acto de resistência. Contra a contaminação da linguagem por aquilo a que Sofia de Mello Breyner chamava “o capitalismo das palavras”. Contra a cultura do número e a ocupação da língua por taxas de juro, cotações bolsistas, troikas, e empresas de “rating”. Contra a violação da nossa liberdade pela mão invisível. Contra o imediato, o efémero, o mediático. Procurar o sentido, mesmo que não haja sentido nenhum, é um acto de resistência. Cantar o amor, formular as perguntas sem resposta, escrever sobre a transcendência, a presença, ou a ausência de Deus, são actos de resistência. Pela palavra poética se resiste. Aos aparelhos económicos e políticos que bloqueiam a nossa cidadania. Entre os muitos défices que avassalam o mundo e invadem as nossas vidas, há um de que não se fala: o défice de poesia. A palavra do homem está pervertida. Pela tecnocracia, pelos interesses, pelo império do dinheiro. A pequena ou grande revolução que cada poeta pode fazer é subverter o discurso instituído e recuperar a força mágica da palavra. Porque a poesia é linguagem e só por ela se pode reconquistar a perdida beleza da palavra do Homem. Talvez seja para isso que servem os poetas em tempo de indigência. E talvez seja esse o poder da poesia na grande selva em que se transformou o mundo.
O futuro da Humanidade, para além do usufruto de toda a evolução científica e tecnológica, depende muito especialmente, da capacidade de cada cidadão sonhar e do desenvolvimento de uma inteligência de descoberta e relação com o meio, que assegurem valores e preservem a integridade do Homem e do Planeta.
Bento de Jesus Caraça dir-nos-ia que, não destruindo a cultura, há que  -  pelo contrário  -  intensificá-la, desenvolvê-la, promovendo-a no cômputo de que em todos os homens existe a mesma parcela de dignidade; simplesmente, nalguns está de tal modo adormecida que chegam a dar a impressão de serem inferiores, gerando os sentimentos da humilhação. Ora, a humilhação do homem perante o homem é imoral.
Eduquemos, então, e cultivemos a consciência humana, acordêmo-la quando estiver adormecida, dando a cada um a consciência completa de todos os seus direitos e todos os seus deveres, da sua dignidade, da sua liberdade. Sejamos homens livres, dentro do mais belo e nobre conceito de liberdade  -  o reconhecimento a todos do direito ao completo e amplo desenvolvimento das suas capacidades intelectuais, artísticas e materiais (circunstância só verificável em Democracias).
E quem dá realidade a uma Democracia?  -  interroga-se António Sérgio; porém, responder-nos-á ele: É o cidadão de carácter, e de espírito crítico, que consegue dominar os seus próprios nervos, e que sabe opor aos variados poderes (pelos seus próprios juízos) uma resistência pacífica, obstinada, lúcida. Para Sérgio, a verdadeira reforma da sociedade não depende só de um remédio mecânico a ela aplicado de uma vez para sempre: tem de estribar-se simultâneamente numa acção moral de todos os dias. O socialismo eterno e mais profundo é o de carácter ético e idealista  -  como Antero no-lo prégou. Ora  -  como nos diz ainda Sérgio  -  «sempre em busca de soluções mecânicas, muitos se resumem à ideia simplista de “extinguir o analfabetismo”, de ensinar a ler a todo o povo. Tarefa essa não só inútil, mas digamos até que  contraproducente, quando a consideramos como a essencial». Porém, Sérgio salvaguardaria: «ensine-se a ler claríssimo está: mas façamo-lo tão-só como um mero instrumento de verdadeira obra educativa, que é a realização da cultura cívica, da disciplina do homem pelo seu próprio intelecto, da concentração do espírito e da mesura ética, da lucidez, da objectividade, do movimento centrípeto  -  em suma, da “vontade geral”  -  no ânimo de cada um de nós».
Neste contexto da promoção dos valores éticos  nas relações sociais, ocorre-me a passagem de um poema de Antero  -  perpassado pelos ideais cristãos, no âmbito de um socialismo temperado por um ideal filantrópico-místico: «Irmãos! irmãos! amemo-nos! é a hora.  //  É de noite que os tristes se procuram,  //  E paz e união entre si juram ...  //  Irmãos! irmãos! amemo-nos agora!»

José Alexandre Laboreiro

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