A Cultura e a Sociedade
«Só é livre o homem que liberta.»
(in “Uma outra memória”)
Em artigo de opinião, inserido no jornal “Público”,
Guilherme Valente antepõe a premissa de que «A escrita não é uma mera
representação do idioma. Nem é uma arbitrariedade. Tem uma lógica, uma
história, uma função, valor e importância inestimáveis. A gramática, a sua
nomenclatura e terminologia também não podem ser o “tricot” com que os nossos
linguistas alteraram recorrentemente os programas de Português. Talvez para
fazerem passar por avanços da ciência o que na realidade o não é. Mas a
gramática e a sua nomenclatura têm também uma lógica e uma história.
Do mesmo modo que os Jerónimos ou a Batalha também não são a
construção de lego com que uma criança possa brincar, ou mamarrachos que se
possam alterar ou destruir à vontade. Nem a obra “Os Maias” pode ser trocada
por uma versão facilitista, idiota dela. De facilitismo em facilitismo, de
simplificação em simplificação, é inteligência que se atrofia e que matam. A
língua, organismo vivo, enriquecível pela interacção inevitável das culturas,
não deixa de ser por isso a herança matricial que é, que tem de ser cuidada,
ensinada e amada - escola é, sempre, a palavra-chave. Por isso,
a escrita, que reflecte essa natureza da
língua, pode e deve ser actualizada. Mas no seu tempo e com critério,
tocando-se nela com precisão cirúrgica, sem ferir a sua lógica, sem quebrar o
fio agregador da sua origem e da sua história. Porque tal como todos os outros
elementos que referi, tal como a História, é constitutiva e constituinte de uma
identidade humana, que é, na sua universalidade, singular. Porque tudo o que
somos, pensamos ou fazemos é resultado de uma cultura, isto é, “de uma
compreensão do mundo historicamente adquirida”. Que devemos assumir e nos
devemos orgulhar ... Não há Nação sem língua, sem escrita, sem escola. Sem
memória, sem História, sem afectos. Que só o conhecimento pode gerar. Sem
herança imaterial e material, que se
ensine e se aprenda a reconhecer, a compreender, a valorizar criticamente a
continuar. A amar. Não se nasce português, ou francês, ou chinês; qualquer um
de nós, ser biológico, poderia ter nascido num lugar qualquer. E seria desse
lugar. É-se verdadeiramente português, mais português por se querer ser
Português. Wenceslau de Moraes, por exemplo, escolheu ser japonês, e foi tão
japonês, mais japonês, seguramente, do que muitos japoneses. Portugueses de
Macau, como eu os conheci, mesmo sem nunca terem vindo a Portugal, são mais
portugueses do que inúmeros cidadãos portugueses que aqui nasceram, cujos
antepassados viveram desde sempre em Portugal.»
Ora, para Manuel António Pina, a alma dos povos, como a alma
dos homens, precisa de horizontes largos e irrealizáveis, e nos últimos tempos
a nossa alma colectiva foi metodicamente aprisionada nos limites da Balança de
Pagamentos e de um montão de siglas sonoras e indecifráveis, e corrompida pelo
comércio e pela usura. Como no “Admirável Mundo Novo” de Huxley, palavras como
solidariedade e igualdade caíram em desuso e tornaram-se obsoletas e
desprezíveis; e mesmo ideias imensas como a de liberdade foram reduzidas às
dimensões mesquinhas do mercado. A grandeza, para os liberais profetas do
sucesso, corresponde, mais ou menos, ao volume da “facturação” e dos resultados
líquidos, e uma mecânica legião de economistas e de gestores atarefa-se
monocordicamente em convencer-nos de que a felicidade é a mesma coisa que taxas
de juro baixas - segundo António Pina nos alerta em “Crónica,
Saudade da Literatura”.
Ora, é neste contexto que Manuel Alegre - indo
de encontro à exortação de José Saramago, ao defender que «ser escritor não é
apenas escrever livros, é muito mais uma atitude perante a vida, uma exigência
e uma intervenção» - o Poeta da “Praça da Canção” e do “Canto e as
Armas”, dizíamos, se interroga: «Para que servem os poetas em tempo de
indigência?» E responde: é para isso que servem os poetas - para
escrever poesia. Cada poema que se escreve é uma derrota da indigência, seja
ela cultural, ética, política, ou mesmo literária. Uma derrota da indigência, e
da regressão civilizacional que estamos a viver.
E, para Manuel Alegre, cada poema -
independentemente do seu conteúdo
- é um acto de resistência. Contra
a contaminação da linguagem por aquilo a que Sofia de Mello Breyner chamava “o
capitalismo das palavras”. Contra a cultura do número e a ocupação da língua
por taxas de juro, cotações bolsistas, troikas, e empresas de “rating”. Contra
a violação da nossa liberdade pela mão invisível. Contra o imediato, o efémero,
o mediático. Procurar o sentido, mesmo que não haja sentido nenhum, é um acto
de resistência. Cantar o amor, formular as perguntas sem resposta, escrever
sobre a transcendência, a presença, ou a ausência de Deus, são actos de
resistência. Pela palavra poética se resiste. Aos aparelhos económicos e
políticos que bloqueiam a nossa cidadania. Entre os muitos défices que
avassalam o mundo e invadem as nossas vidas, há um de que não se fala: o défice
de poesia. A palavra do homem está pervertida. Pela tecnocracia, pelos
interesses, pelo império do dinheiro. A pequena ou grande revolução que cada
poeta pode fazer é subverter o discurso instituído e recuperar a força mágica
da palavra. Porque a poesia é linguagem e só por ela se pode reconquistar a
perdida beleza da palavra do Homem. Talvez seja para isso que servem os poetas
em tempo de indigência. E talvez seja esse o poder da poesia na grande selva em
que se transformou o mundo.
O futuro da Humanidade, para além do usufruto de toda a
evolução científica e tecnológica, depende muito especialmente, da capacidade
de cada cidadão sonhar e do desenvolvimento de uma inteligência de descoberta e
relação com o meio, que assegurem valores e preservem a integridade do Homem e
do Planeta.
Bento de Jesus Caraça dir-nos-ia que, não destruindo a
cultura, há que - pelo contrário -
intensificá-la, desenvolvê-la, promovendo-a no cômputo de que em todos
os homens existe a mesma parcela de dignidade; simplesmente, nalguns está de
tal modo adormecida que chegam a dar a impressão de serem inferiores, gerando
os sentimentos da humilhação. Ora, a humilhação do homem perante o homem é
imoral.
Eduquemos, então, e cultivemos a consciência humana,
acordêmo-la quando estiver adormecida, dando a cada um a consciência completa
de todos os seus direitos e todos os seus deveres, da sua dignidade, da sua
liberdade. Sejamos homens livres, dentro do mais belo e nobre conceito de
liberdade - o reconhecimento a todos do direito ao
completo e amplo desenvolvimento das suas capacidades intelectuais, artísticas
e materiais (circunstância só verificável em Democracias).
E quem dá realidade a uma Democracia? -
interroga-se António Sérgio; porém, responder-nos-á ele: É o cidadão de
carácter, e de espírito crítico, que consegue dominar os seus próprios nervos,
e que sabe opor aos variados poderes (pelos seus próprios juízos) uma
resistência pacífica, obstinada, lúcida. Para Sérgio, a verdadeira reforma da
sociedade não depende só de um remédio mecânico a ela aplicado de uma vez para sempre:
tem de estribar-se simultâneamente numa acção moral de todos os dias. O
socialismo eterno e mais profundo é o de carácter ético e idealista - como
Antero no-lo prégou. Ora - como nos diz ainda Sérgio -
«sempre em busca de soluções mecânicas, muitos se resumem à ideia
simplista de “extinguir o analfabetismo”, de ensinar a ler a todo o povo.
Tarefa essa não só inútil, mas digamos até que
contraproducente, quando a consideramos como a essencial». Porém, Sérgio
salvaguardaria: «ensine-se a ler claríssimo está: mas façamo-lo tão-só como um
mero instrumento de verdadeira obra educativa, que é a realização da cultura
cívica, da disciplina do homem pelo seu próprio intelecto, da concentração do
espírito e da mesura ética, da lucidez, da objectividade, do movimento
centrípeto - em suma, da “vontade geral” - no
ânimo de cada um de nós».
Neste contexto da promoção dos valores éticos nas relações sociais, ocorre-me a passagem de
um poema de Antero - perpassado pelos ideais cristãos, no âmbito
de um socialismo temperado por um ideal filantrópico-místico: «Irmãos! irmãos!
amemo-nos! é a hora. // É de noite que os tristes se procuram, // E
paz e união entre si juram ... // Irmãos! irmãos! amemo-nos agora!»
José Alexandre
Laboreiro
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