Há tempos, já lá vão uns bons quarenta anos, lemos uma frase
que nos deixou a matutar e que, de vez em quando, teima em vir à tona.
A frase, que aparecia escrita no semanário O Meridional do dia 15 de Março de 1903, rezava
o seguinte: “Desgraçados os homens de
talento, os apaixonados da imortalidade que raramente deixam na terra quem compreenda
o que mais grato seria à sua memória”.
É neste leque que costumamos incluir Belchior Curvo Semedo e
outros poetas e prosadores nossos contemporâneos.
A triste contestação de que o país, a começar pela escola,
vota ao esquecimento muitos dos seus melhores escritores, espicaça-nos a
vontade de rumar contra a maré e dar o nosso modestíssimo contributo para
divulgar a produção literária de alguns deles. Enquanto montemorense,
incomoda-nos o desconhecimento ou o conhecimento de fachada que presumimos
existir à volta de homens de letras como Curvo Semedo e outros mais recentes.
Correndo o risco de desagrada a alguns dos nossos amigos leitores
que esperarão outro tipo de Memórias menos literárias, não resistimos a voltar,
pela quarta vez consecutiva, à vida e obra do poeta montemorense.
Sempre foi nossa convicção de que a melhor maneira de
relembrar um escritor é ler as suas palavras, dando-lhes vida. Por isso.
Aproveitamos esta tribuna para levarmos até aos estimados leitores alguns
textos que saíram da inspirada pena do árcade Belmiro Transtagano.
No intuito de chegar a u público tão vasto e heterógeno
quanto possível, utilizaremos uma ortografia e uma pontuação mais próxima dos
nossos dias.
Semedo escreveu uma quantidade apreciável de sonetos: uns de
caracter mais político e ideológico, fazendo a apologia de figuras e episódios
históricos da época; outos, em tom de sátira literária; outros ainda, de pendor
lírico/amoroso. No soneto que a seguir apresentamos, bem ao gosto clássico, o
poeta enaltece as qualidades psicológicas da mulher retratada._
Não consiste nuns
olhos matadores,
Nuns lábios de rubi,
num colo alpino,
A beleza do sexo feminino
Que prende a atrai
milhões de adoradores.
Há dons ocultos, dons
encantadores
D´alto apreço e de
mérito divino,
Que mais valia têm,
melhor destino,
Que as belas feições
exteriores.
Se o meu bem não tem
rara formosura,
Os encantos que faltam
no seu rosto
Sobram em sua angélica
estrutura.
E o mais que enfim não
anda à vista exposto
É de atrativos tais,
de tal doçura,
Que nunca o toca sem
morrer de gosto.
Num tempo em que o canto lírico era muito apreciado, Curvo
Semedo escreveu vários madrigais, cançonetas, idílios e outras composições
breves, algumas delas destinadas a serem cantadas.
É também da sua autoria um número significativo de
epigramas, poemas curtos que terminam frequentemente num pensamento espirituoso
ou satírico, como este que escolhemos:
Um beberrão de má fé,
Uma tasca amotinando,
Deu tamanho pontapé
N´um sábio que ia
passando,
Que deu com ele no
chão.
Esperava-se função,
Mas o sábio ergueu-se
e foi,
Dizendo para a
taverna:
-Por dar uma besta um
coice,
Devemos cortar-lhe a
perna?
Divertidíssimas são igualmente as glosas joco-sérias que o
poeta escreveu, carregadas de calão daquela época e inspiradas em figuras
típicas de Lisboa, como os marinheiros ou as mulheres de Alfama. Deixamos aqui,
em jeito de aperitivo, uma fala de um desses diálogos:
Velha
Minha neta anda a
cuspir,
Você alguma lhe fez;
Deixe passar este mês,
Que tem muito que me
ouvir.
Veja, não se prante a
rir,
Que a história há-de
ser falada.
Bem nascida e mal
fadada!
Se a enganou, case com
ela,
Qu´inda que a vários
dá trela,
A pequena é muito
honrada.
Curvo Semedo era bem conhecido pelos seus ditirambos,
composições peticas que serviam para assinalar acontecimentos importantes e em
que o vinho aparecia como tema obrigatório.
Faceta importante foi também a incursão ou incursões que fez
na escrita teatral. Poderá não ter a mesma qualidade das comédias de um Molière
ou de um Marivaux, mas o Entremez que Semedo escreveu está cheio de graça e
fornece-nos um divertido retrato da época. No excerto que se segue, entre uma
donzela e a sua criada, damo-nos conta da importância que as artes e as
ciências passaram a ter na educação das mulheres e o forte desejo de
emancipação feminina.
Briolanja (donzela)
Desde menina educada
Por mestre de
puberdade,
Amo as artes e as
ciências
Esteios da sociedade.
Quando vejo um homem
néscio
Encho-me d´um certo
horror.
Moquenca (criada)
Não sei como está
donzela
Havendo tanto doutor.
Briolanja
Meu primo não é meu
pai,
E se lhe deve amizade,
Não é para
constranger-me
Qu´eu tenho livre a
vontade.
Portanto, estou
resoluta
A dizer-lhe rosto a
rosto
Que pelos bens do meu
tio
Não sacrifico o meu
gosto.
Moquenca
Senhora faz muito bem
Acho-lhe toda a razão.
Há vida mais
desgraçada
Qu´aturar um toleirão?
O talento neste mundo
É para tudo preciso.
Até para encher
albarda
É necessário juízo…
Como muitos estimados leitores saberão, foi como fabulista
que o poeta montemorense se notabilizou, traduzindo e recreando um grande
número de fábulas e apólogos. Dado que muitas destas narrativas já se encontram
publicadas, dispensamo-nos de as apresentar aqui.
Fazia, no entanto algum sentido pensar-se numa nova edição
da obra literária do poeta, na altura em que se assinalam os 250 anos do seu
nascimento.
Até à próxima
Vitor Guita –Abril 2016
Extraído do mensário “O Montemorense”- transcrição
autorizada pelo Autor
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