quarta-feira, 4 de maio de 2016

MEMÓRIAS CURTAS - Uma rubrica mensal a cargo do Professor Vitor Guita

Há tempos, já lá vão uns bons quarenta anos, lemos uma frase que nos deixou a matutar e que, de vez em quando, teima em vir à tona.
A frase, que aparecia escrita no semanário O Meridional do dia 15 de Março de 1903, rezava o seguinte: “Desgraçados os homens de talento, os apaixonados da imortalidade que raramente deixam na terra quem compreenda o que mais grato seria à sua memória”.
É neste leque que costumamos incluir Belchior Curvo Semedo e outros poetas e prosadores nossos contemporâneos.

A triste contestação de que o país, a começar pela escola, vota ao esquecimento muitos dos seus melhores escritores, espicaça-nos a vontade de rumar contra a maré e dar o nosso modestíssimo contributo para divulgar a produção literária de alguns deles. Enquanto montemorense, incomoda-nos o desconhecimento ou o conhecimento de fachada que presumimos existir à volta de homens de letras como Curvo Semedo e outros mais recentes.
Correndo o risco de desagrada a alguns dos nossos amigos leitores que esperarão outro tipo de Memórias menos literárias, não resistimos a voltar, pela quarta vez consecutiva, à vida e obra do poeta montemorense.
Sempre foi nossa convicção de que a melhor maneira de relembrar um escritor é ler as suas palavras, dando-lhes vida. Por isso. Aproveitamos esta tribuna para levarmos até aos estimados leitores alguns textos que saíram da inspirada pena do árcade Belmiro Transtagano.
No intuito de chegar a u público tão vasto e heterógeno quanto possível, utilizaremos uma ortografia e uma pontuação mais próxima dos nossos dias.
Semedo escreveu uma quantidade apreciável de sonetos: uns de caracter mais político e ideológico, fazendo a apologia de figuras e episódios históricos da época; outos, em tom de sátira literária; outros ainda, de pendor lírico/amoroso. No soneto que a seguir apresentamos, bem ao gosto clássico, o poeta enaltece as qualidades psicológicas da mulher retratada._
Não consiste nuns olhos matadores,
Nuns lábios de rubi, num colo alpino,
A beleza do sexo feminino
Que prende a atrai milhões de adoradores.

Há dons ocultos, dons encantadores
D´alto apreço e de mérito divino,
Que mais valia têm, melhor destino,
Que as belas feições exteriores.

Se o meu bem não tem rara formosura,
Os encantos que faltam no seu rosto
Sobram em sua angélica estrutura.

E o mais que enfim não anda à vista exposto
É de atrativos tais, de tal doçura,
Que nunca o toca sem morrer de gosto.
Num tempo em que o canto lírico era muito apreciado, Curvo Semedo escreveu vários madrigais, cançonetas, idílios e outras composições breves, algumas delas destinadas a serem cantadas.
É também da sua autoria um número significativo de epigramas, poemas curtos que terminam frequentemente num pensamento espirituoso ou satírico, como este que escolhemos:
Um beberrão de má fé,
Uma tasca amotinando,
Deu tamanho pontapé
N´um sábio que ia passando,
Que deu com ele no chão.
Esperava-se função,
Mas o sábio ergueu-se e foi,
Dizendo para a taverna:
-Por dar uma besta um coice,
Devemos cortar-lhe a perna?

Divertidíssimas são igualmente as glosas joco-sérias que o poeta escreveu, carregadas de calão daquela época e inspiradas em figuras típicas de Lisboa, como os marinheiros ou as mulheres de Alfama. Deixamos aqui, em jeito de aperitivo, uma fala de um desses diálogos:
Velha

Minha neta anda a cuspir,
Você alguma lhe fez;
Deixe passar este mês,
Que tem muito que me ouvir.
Veja, não se prante a rir,
Que a história há-de ser falada.
Bem nascida e mal fadada!
Se a enganou, case com ela,
Qu´inda que a vários dá trela,
A pequena é muito honrada.



Curvo Semedo era bem conhecido pelos seus ditirambos, composições peticas que serviam para assinalar acontecimentos importantes e em que o vinho aparecia como tema obrigatório.
Faceta importante foi também a incursão ou incursões que fez na escrita teatral. Poderá não ter a mesma qualidade das comédias de um Molière ou de um Marivaux, mas o Entremez que Semedo escreveu está cheio de graça e fornece-nos um divertido retrato da época. No excerto que se segue, entre uma donzela e a sua criada, damo-nos conta da importância que as artes e as ciências passaram a ter na educação das mulheres e o forte desejo de emancipação feminina.

Briolanja (donzela)

Desde menina educada
Por mestre de puberdade,
Amo as artes e as ciências
Esteios da sociedade.
Quando vejo um homem néscio
Encho-me d´um certo horror.

Moquenca (criada)

Não sei como está donzela
Havendo tanto doutor.

Briolanja

Meu primo não é meu pai,
E se lhe deve amizade,
Não é para constranger-me
Qu´eu tenho livre a vontade.
Portanto, estou resoluta
A dizer-lhe rosto a rosto
Que pelos bens do meu tio
Não sacrifico o meu gosto.
Moquenca
Senhora faz muito bem
Acho-lhe toda a razão.
Há vida mais desgraçada
Qu´aturar um toleirão?
O talento neste mundo
É para tudo preciso.
Até para encher albarda
É necessário juízo…

Como muitos estimados leitores saberão, foi como fabulista que o poeta montemorense se notabilizou, traduzindo e recreando um grande número de fábulas e apólogos. Dado que muitas destas narrativas já se encontram publicadas, dispensamo-nos de as apresentar aqui.
Fazia, no entanto algum sentido pensar-se numa nova edição da obra literária do poeta, na altura em que se assinalam os 250 anos do seu nascimento.
Até à próxima
Vitor Guita –Abril 2016
Extraído do mensário “O Montemorense”- transcrição autorizada pelo Autor



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