quarta-feira, 20 de maio de 2015

UMA HISTÓRIA - Pelo A.C.

             Investigação na Praça do Teatro

Na Praça do Teatro a azáfama das máquinas escavadoras dá origem a uma cratera que mais parece ser o efeito da queda de um engenho explosivo de grande potência. As obras, que têm como fim a construção de um parque de estacionamento subterrâneo, em zona de influência do centro histórico, estão ao abrigo dos mirones por uma vedação cerrada de madeira.
Subitamente o ruído ensurdecedor dos motores em acção deixa de atentar contra os tímpanos dos transeuntes e a coluna de pó que entra pelas frestas das janelas, a alguma distância, acama-se paulatinamente marcando todos os recantos com resquícios da sua presença.
Ao princípio da tarde o arqueólogo chefe da Universidade é visto entrar para a zona das obras, vestido a rigor como qualquer engenheiro, sinal de que uma ruína, talvez restos de uma estrutura antiga foi posta à luz do dia pelas escavações.
Pelas onze e trinta da manhã uma secretária atendera uma chamada telefónica da parte do empreiteiro que dirige a construção do parque.
«Está lá..., sim..., estou..., ouve-se mal, estou no fundo do buraco...»
Do outro lado da rede uma voz feminina, trocista, questiona: –e quem o mandou meter-se no fundo do buraco?
O homem, meio irritado, volta à carga: «estou no fundo das obras do parque..., em frente ao Teatro..., o meu telefone tem pouca rede...»
–Agora ouvi perfeitamente, apressou-se a informar a secretária, em que posso ser-lhe útil senhor...?
«Minha senhora, uma escavadora pôs a descoberto dois esqueletos que estão juntos, quero dizer, na mesma cova..., não sabemos se há mais..., o manobrador fugiu com o susto que apanhou..., depois todos rimos..., mandei suspender os trabalhos até alguém entendido ver do que se trata.»
–Muito obrigada, ouviu-se a voz desinteressada da secretária, com certeza habituada a receber este tipo de recados, vou avisar o meu chefe, alguém... A chamada caiu levando a voz do empreiteiro a ecoar pelas paredes da cratera – está..., estou..., está lá...
A cidade é um conjunto de estruturas que se foram sobrepondo no tempo, assentes umas sobre outras, espreitando aqui e acolá algumas que ousam assomar-se através dos séculos.
Quando o Professor Saturnino Viegas se dirige para a Praça do Teatro vai conversando as suas divagações com as pedras dos muros e das calçadas, como é seu costume, porque as pedras velhas e gastas por vezes devolvem opiniões sensatas, assentes na experiência de longos anos passados.
–Já muito me admirava que ainda não tivessem encalhado em meia dúzia de cacos velhos, quanto mais não seja para cumprir a regra que é lei na “merda desta cidade” – não se levanta uma pedra que não se destape logo outra mais antiga.
Depois de passar a entrada da vedação de madeira o Professor Saturnino fica alguns segundos imóvel, enquanto limpa os óculos de aros metálicos redondos que lhe fazem os olhos ainda mais pequenos mas sem ocultar a aparência inteligente e observadora que transmitem. Cofia a barbicha desalinhada e continua a fazer comentários para si próprio. A escavação efectuada – emprega o termo por hábito profissional para designar a abertura feita – tem uma profundidade maior do que pensava. À medida que vai descendo por um trilho de pó, pouco seguro, vai observando as fatias dos muros circundantes, ainda crus. Afloram vestígios de casas da época medieval, cristãs e árabes, sem dúvida bem fora da cerca defensiva dessa época. O que leva a concluir que estamos perante um arrabalde muito antigo, onde cristãos e árabes viveram paredes meias – um espaço raro de tolerância entre os dois credos.
O homem que o arqueólogo palpita ser o empreiteiro veste um blaser com uma camisa branca e calça clara bem vincada, que lhe negam o estatuto de assalariado e tem um capacete de protecção de cor azul marinha em contraste com os amarelos dos homens que o rodeiam. Encontram-se no topo sul da abertura gigantesca, já com cerca de quinze metros abaixo do solo, olhando absortamente para o que deve ser o achado que é motivo da sua visita às obras do parque de estacionamento.
Quando pressentem a sua presença abrem um pouco o círculo que formam e o Professor Saturnino Viegas fica frente a frente com o senhor Arantes Gaspar, empreiteiro diplomado da construção civil, a quem os funcionários da firma construtora chamam, por dá cá aquela palha, de senhor engenheiro. Quase encostada ao muro do topo sul, protegida pela sombra que lhe forma uma espécie de cortina, vê-se uma fossa estreita e pouco profunda que contém, à primeira vista, duas ossadas humanas.
Depois das apresentações formais e de um pedido de investigação acelerada do assunto, pois a empreitada tem os minutos contados, o senhor Gaspar – considerando-se um mecenas das coisas antigas – dá um jeito às mangas do casaco que abotoa cerimoniosamente como se de uma inauguração se tratasse e aponta para o sítio a que o arqueólogo dá toda a atenção desde que chegou.
Saturnino Viegas repete o gesto de cofiar a barbicha desalinhada, denunciando um tique que sucede quando os acontecimentos lhe absorvem por completo o pensamento, enquanto se dirige ao outro de modo imperativo.
–Apenas uma hora, senhor engenheiro, para recolha de algum material e tirar meia dúzia de fotografias, apenas uma hora – sublinha, já envolto pela penumbra do seu trabalho. O senhor Arantes Gaspar faz qualquer comentário descabido a que Saturnino Viegas já não dá atenção, embora lhe responda: –sim, sim, deve voltar a enterrar os mortos para que reiniciem o repouso que lhes estorvou.
                                                                       ***
No gabinete do chefe do Departamento de Arqueologia da Universidade a área é contada ao centímetro. As paredes estão tapadas de estantes apinhadas de livros que Saturnino Viegas localiza um a um sempre que é necessário. Pelos cantos e chão do aposento todo o cuidado é pouco para não danificar algum dos muitos objectos antigos vindos de estações arqueológicas para investigação, depositados sem qualquer ordem aparente mas o utilizador do gabinete movimenta-se no exíguo intervalo entre as preciosas antiguidades como se ali nada existisse. Na secretária de mogno, com tampo de vidro embutido, também há alguma confusão de papéis e três ou quatro peças de cerâmica do calcolítico que contrastam com o computador pessoal do arqueólogo.
Bem em destaque no centro da mesa de trabalho estão por ordem dez fotografias a preto e branco, tantas quantos os ângulos possíveis em que o Professor Saturnino conseguiu fotografar a sepultura descoberta na obra do parque de estacionamento da Praça do Teatro. E dispostos simetricamente, por baixo da fiada de fotografias acabadas de revelar, vêem-se três peças ósseas relativas aos restos mortais recolhidos no túmulo para fins de investigação, já que ainda na sua presença, Saturnino Viegas assiste ao camartelo revolver o espaço milenar que minutos antes tratara com admiração e respeito e confundi-lo com toneladas de entulho retirado do fundo da obra.
As fotografias confirmam as primeiras ilações da observação atenta feita “in loco”. Trata-se de um enterramento árabe, pois os esqueletos encontram-se posicionados de lado, com a parte facial do craneo orientada para Meca. Mas os craneos estão numa atitude bizarra, dispostos entre a parte do esqueleto dos pés dos mortos, sem dúvida ali colocados propositadamente. O Professor embrenha-se nas fotografias, nos restos dos despojos humanos, na visão de centenas de anos atrás...
O tique de cofiar a barbicha instala-se..., não dá conta do corrupio de gente que passa para as aulas ou outros departamentos da Universidade..., não ouve sequer o toque insistente da campainha do gabinete, accionada por dois alunos que desistem da espera e resolvem fazer a entrega de um trabalho para mais tarde.
Levanta-se, acende um cigarro junto à porta envidraçada das traseiras da sala que dá para o jardim da Universidade. O dia está bonito, o sol entra a jorros pelas vidraças, a passarada anda num delírio com o cheiro da primavera. Saturnino não dá por isso. Quando volta para a secretária discursa em voz alta, fixando os livros e pedras velhas como se de uma assistência se tratasse. “A sepultura não apresenta sinais de ter sido violada em épocas anteriores. O que significa que os dois corpos foram decapitados, sendo as cabeças postas junto aos pés no momento do enterramento, por alguém que respeitou a fé dos crentes. O exame minucioso, quer no local, quer pelas fotografias, determina que um dos esqueletos pertenceu a um homem com idade compreendida entre quarenta e cinquenta anos no momento da morte, não mais, de estatura média – cerca de um metro e sessenta e cinco de altura – e pelo estado de conservação dos ossos, nomeadamente da cabeça do fémur recolhido, que não apresenta sinais de desgaste ósseo importante, suscita a imagem de alguém que não utilizava a força física – tinha homens que trabalhavam para si... podia ser um príncipe ou um rei...
O segundo esqueleto em questão identifica uma mulher nova, talvez não tivesse mais de dezoito anos, o máximo vinte e, curiosamente, tinha uma estatura um pouco superior ao homem – cerca de um metro e setenta centímetros. Os ossos não apresentam sinais de doenças e algumas peças dentárias existentes têm bom estado de conservação, o que reflecte preocupação com a higiene pessoal, hábito enraizado apenas em indivíduos de status social elevado. O pequeno fémur retirado, de entre outros pequenos ossos depositados junto à bacia da mulher, permite-nos concluir que estava grávida quando foi executada..., o que transporta até nós um drama de grande intensidade e violência. Na cidade houve grandes convulsões durante a ocupação árabe e ao longo dos tempos da reconquista cristã. É importante datar o achado para que as conjecturas sejam mais fundamentadas”.
Do laboratório respondem ao fim de alguns dias que os ossos analisados têm cerca de oitocentos anos, com uma margem de erro até oitocentos e cinquenta anos e que o estudo genético vai demorar, pelo menos, mais...
Saturnino Viegas já não ouve a restante informação dada pelo seu interlocutor.
Para o chefe do Departamento de Arqueologia da Universidade os decapitados eram seguramente parentes. Talvez marido e mulher..., príncipes muçulmanos..., talvez pai e filha...
O arqueólogo dá a última passa no cigarro que esmaga no cinzeiro de pé alto, recosta-se no cadeirão flexível em atitude de repouso, fica em estado de semi-hipnose seguindo o feixe de luz que atravessa o silêncio do gabinete e vai atingir certeiramente um pequeno emblema heráldico, meio escondido numa das estantes atafulhada de livros. Simboliza uma tragédia semelhante à que acaba de fantasiar nesse tempo distante de há oitocentos anos...
os decapitados de Ebora.

AC


4 comentários:

Anónimo disse...



OBS.

Gostei, claro está, desta construção literária pormenorizada do AC que, assim como quem quer tratar o tema e este seu conto o demonstra, acaba a descrever-nos e a desocultar certas praticas amorosas da tradição muçulmana em Évora (tradição que era,aliás, alheia às ideias suicidárias muito em voga e bastante ao contrário do que, hoje, vai acontecendo. Tal é "a violência diária" crescente e inaceitável que se vem instalando no mundo...).

Resumidamente, apenas ouso acrescentar que este exercício narrativo do AC,em nossa opinião,também reflecte e se apresenta com uma certa marca de vivência e reconciliação histórica bastante sedutora... se,já agora, também fosse possível.

Algo que até,diria eu,é uma visão um tanto sonhadora e romântica (embora o romantismo -enquanto criação humana-caia sempre bem em qualquer época e lugar) do mundo em que nos é dado ter uma existência humana.

Tudo isto como que a querer finalmente transportar-nos e a conjugar, da melhor forma, aquilo que talvez melhor pode ajudar a compreender o jogo entre a vida e a morte: a possibilidade constante e a atracção absoluta dos seres humanos pela personificação e embelezamento da vida e da intemporalidade.

Seja cristão,muçulmano,judeu ou conviva com outras variantes e praticas religiosas existentes por todo este pequeno e precário mundo terreno.

Melhores saudações para o AC


Antonio Neves Berbem

Anónimo disse...

Caro TZ
Recordas aquela nossa conversa sobre o Al Tejo?...
Era inevitável que, mais cedo ou mais tarde, cá voltasse (voltássemos), pois o Chico é aquele amigo que faz parte da nossa carga genética alandroalense e que muito estimamos. Ele agora está mais atento aos (não)comentários.
Fiquei muito lisonjeado com a tua crítica ao meu texto, não por vaidade, conheces-me bem, mas por me chegar de ti leitor incomensurável e conhecedor profundo da arte literária e da escrita.
Ocupando um pouco mais do teu tempo (quanto mais velhos mais precioso é) deixa-me confidenciar-te que jantei na Portugália hoje, com a Joana. Bebendo uma imperial e comendo uns tremoços vi o "nosso mestre" entrar..., de cigarro na mão e deitando aquele seu olhar que abarcava o amplo salão, para escolher a mesa onde pretendia sentar-se. Apanhei essa onda de há trinta e tal anos, a ponto de a Joana ficar quase zangada por não dar atenção à conversa que me estava a fazer.

Um abraço do teu amigo
AC

Anónimo disse...

Vou ler o texto de novo. Até aqui só o li uma vez. E, sem prejuízo de voltar a ajuizar, desde já digo que o ligo ao brasão da Câmara Municipal de Évora. E aquelas duas cabeças decepadas do brasão o que têm a ver com texto? Simples acaso? Vindo o texto do AC não me parece crível.
Voltaremos a falar se para tanto houver motivo.

Anónimo disse...

Aqui vai depois de reler o que o AC escreveu. P'ra mim, e romantismos à parte, o texto tem que ver com o brasão da Câmara Municipal de Évora. E está muito bem colocado e sempre a propósito. Na opinião do humilde escriba destas linhas, simultaneamente beduíno das margens do agora Alqueva, acho, com o devido respeito, é claro, que se os eborenses querem manter o Giraldo (que afinal não passava dum bandoleiro), no seu brasão, devem, pelo menos, retirar as cabeças decepadas do casal de árabes que também lá estão há séculos.
AC, desculpa lá estes devaneios. É que isto foi escrito depois dum lanche bem regado. E também percebi aquela do nosso mestre.
Passa bem. Tu, e o teu pessoal.