Abril frio e molhado enche o celeiro e farta o gado.
Em Abril, águas mil.
Milhentos são os ditados
populares a propósito do quarto mês do nosso calendário. São também plurais as
explicações para a origem da palavra Abril. Para uns, tem raiz latina; para
outros, o nome provem do grego. Seja como for tudo aponta para a ideia de
fecundidade, do desabrochar das flores, do despertar da natureza.
Estas e outras reflexões
foram-nos assaltando o espírito, enquanto viajávamos estrada fora,, a caminho
do Ciborro, conquistados pelo delicioso borrego que se come naquelas paragens.
Ao atravessarmos o Cortiço, a
atenção desviou-se, durante brevíssimos instantes, para os hortejos à beira da
estrada. Logo a seguir, o olhar espraiou-se pela planura de Benalfange, onde
existiu, em tempos, um campo de aviação.
Depois das curvas da Repoula,
a passagem por S. Geraldo fez saltar cá para fora um rol de lembranças.
Tentamos identificar antigos lugares de comércio, que eram popularmente conhecidos
por Venda do Cacilhas e venda do Chico Russo.
Também o belo campanário da
Igreja caiada de branco e azul foi pretexto para recordarmos a Festada
Santíssima Trindade, que tinha lugar na estação primaveril. Os festejos
constavam de alvorada, chegada dos músicos, recolha e venda de fogaças e, como
não podia deixar de ser, a tradicional Missa. A tarde era habitualmente
preenchida com torneio de tiro aos pratos, concerto, cavalhadas e, a terminar,
um animado baile. Um dia inteiro de festa!
A bênção do gado era um dos
momentos mais aguardados deste dia festivo, que o tornava diferente de muitos
outros. Num estrado improvisado, o Sr. Prior benzia rebanhos de vacas, cabras,
ovelhas, porcos, também alguns equinos, que desfilavam por entre longas filas
de gente. Uma verdadeira manga humana.
Os lavradores faziam questão
de apresentar o gado bem tratado, lustroso. Alguns animais transportavam ao
pescoço vistosos chocalhos e outros tipos de ornamentos. Acontecia por vezes
instalar-se a confusão. Os bovinos, apertados entre cordões de gente, irrompiam
em correria desordenada, de tal modo que o Sr. Padre mal tinha tempo de benzer
e aspergir a água benta sobre os animais. Também as obstinadas ovelhas decidiam
fazer das suas, começando a andar às voltas no meio daquele ambiente estranho.
O rodopio só terminava quando o pastor agarrava na ovelha cabresteira, que
arrastava consigo todo o rebanho.
Entrámos por fim no Ciborro.
Eram horas de almoço. Em vez de nos deixarmos dominar, de imediato, pela gula
do borrego, passámos em revista alguns lugares associados a lembranças da
adolescência e da juventude. Umas mais marcantes que outras, mas todas fazendo
parte do imenso e labiríntico edifício da memória.
De súbito, veio-nos a
recordação de umas esplendidas botas caneleiras que tivemos, talhadas pelas
mãos do mestre António Bento. Sonhos da juventude! Vestir um casaco cortado
pelo distinto alfaiate de Montemor, Joaquim Marques, e calçar umas botas com o
toque inconfundível do mestre Bento do Ciborro!
Mais do que apego aos bens terrenos
ou outra qualquer venialidade, era a sensação de pudermos usufruir de
autênticas obras de arte.
A recordação do mestre sapateiro teria ficado por ali, se não fosse a conversa que tivemos, posteriormente, com seu filho e nosso velho amigo Carlos Bento. O interesse cresceu à medida que o diálogo foi decorrendo e fomos conhecendo outras facetas daquele ilustre ciborrense.
A recordação do mestre sapateiro teria ficado por ali, se não fosse a conversa que tivemos, posteriormente, com seu filho e nosso velho amigo Carlos Bento. O interesse cresceu à medida que o diálogo foi decorrendo e fomos conhecendo outras facetas daquele ilustre ciborrense.
Disse-nos o Carlos que sempre
ouviu dizer, lá em casa, que os seus antepassados vieram de Valada, zona de
Nisa, muito provavelmente nos finais do sec. XIX. O avô José Bento teria sido
mesmo um dos primeiros homens a vir para aqui, numa fase em que os Condes de
Valenças decidiram avançar com o aforamento e venda de terrenos.
Recorde-se que a aldeia do
Ciborro começou a nascer por volta de 1900.
O pai, António Bento, já
nasceu no povoado, tendo passado algum tempo em Nisa, ainda muito novo, onde
aprendeu o ofício que o tornou famoso.
Instalado definitivamente no
Ciborro, onde montou negócio e constituiu família, o sapateiro exerceu a sua actividade
em diferentes lugares da aldeia, A loja/oficina fixar-se-ia, por longos anos,
na avenida nacional, já na saída para Mora.
A actividade era muito
diversificada. Ora vejamos: sapataria e fabrico de calçado manual; ferragens e
drogaria; quinquilharia, camisaria e chapelaria. Como se isto não bastasse,
António Bento cortava e fornecia vidros para a construção civil e foi agente de
companhias de seguros. Alem disso, os médicos incumbiam-no de fazer as vezes de
enfermeiro, dando injecções; aplicando pensos e outros cuidados de saúde.
No seu espaço de trabalho, o
conhecido sapateiro tinha um balcão alto, onde cortava as peles escolhidas
criteriosamente: calfe, vitela, ensebada, carneira… Viam-se também máquinas de
cise calçado e uma mesa de trabalho, onde assentava e guardava as medidas dos
clientes e outra papelada. Num dos lados, existia um armário com livros. Mestre
Bento tinha grande paixão pela leitura. Sempre que havia oportunidade, fazia
uma pausa no trabalho para ler livros e jornais. Batia-lhe gente à porta para
vender grandes clássicos da literatura, e foi seguramente um dos frequentadores
mais assíduos da Biblioteca itinerante da Gulbenkian. Recebia ainda
diariamente, pelo correio, o jornal Republica. As notícias, como se pode
depreender, eram atrasadas, o que não impedia de devorar o jornal sempre com a
mesma avidez. Se achava um assunto considerado de especial interesse, lia-o em
voz alta, muitas vezes à frente dos oficiais e ajudantes que laboravam na
oficina, sentados em círculo. O local de trabalho transformava-se
frequentemente em espaço de tertúlia. A instrução podia ser pouca, mas
falava-se de desporto, de cantigas e cantores, por vezes de política, de tudo
um pouco…
No tempo em que a luz
electrica ainda não tinha chegado à aldeia, leitura e trabalho eram feitos à
luz do petromax.
António Bento gostava de
inovar, de aperfeiçoar. Nunca dizia que não a um cliente que queria um salto
assim ou um cano de bota de outra maneira.
A fama do calçado fabricado
na ficina do Bento do Ciborro ia passando de boca em boca. Vinham ali
equitadors, cavaleiros tauromáquicos, os filhos da Condessa de Valenças.
Apresentava-se gente de todo o lado. Faziam-se ali os mais diversos tipos de
calçado: botas de montar, à inglesa, de elástico, as cobiçadas botas com salto
de prateleira. Fabricavam-se também sapatos e botas de atanado, especialmente
para quem andava na lida do campo. Produziam-se grandes quantidades deste
calçado, algum dele enviado para Lavre, Pegões e outros destinos. O trabalho
era muito. Não havia horários.
Na oficina, trabalhava um
número considerável de oficiais e aprendizes de sapateiro, chegando a rondar a
dezena. Eram eles que, depois de cortadas as peles, juntas as peças e
escolhidas as formas pelo patrão, pregavam, coziam as viras, faziam o enchimento,
batiam e punham as solas e realizava muitas outras tarefas até chegar ao
acabamento. Também eles tinham a sua cota-parte na fama que a casa ganhou.
Já que falámos, atrás, da
lida do campo, é bom dizer que, António Bento tinha grande apego à terra. Raro
era o dia em que, antes de ir para a oficina, não passasse pelo foro, um
terreno de cultivo de onde saíam os mais diversos produtos. Alturas havia em
que o pessoal sapateiro ajudava nas tarefas do campo.
Guardámos para o fim dois ou
três aspectos peculiares, que ajudam a retratar este dinâmico e prestigiado
ciborrense. Em terra de acordeonistas e outros virtuosos músicos, António Bento
tinha uma predilecção especial pela
música, nomeadamente como ouvinte de fado de Coimbra. O nosso amigo Carlos
confessou-nos que ganhou esse mesmo gosto por influência do pai. Desde muito
cedo, começou a ouvir falar do António Menano e de outros grandes intérpretes
da canção coimbrã.
O teatro foi também uma das
áreas da vivência cultural do Ciborro a que o mestre sapateiro se dedicou.
Depois de Francisco Padrão e Agostinho Faca, foi a vez de António Bento
liderar, durante algum tempo, o grupo cénico. A população do Ciborro assistia
com entusiasmo ás representações teatrais. Pela aldeia, costumavam passar
grupos intenerantes, mas do que os habitantes gostavam era de serem eles
próprios actores das suas peças preferidas. No período liderado por António
Bento e por Jerónimo Carapinha foram representadas peças de Ramada Curto e
outras obras proibidas pela censura.
O gosto pela música e pelo
teatro estava enraizado nas gentes do Ciborro. Outras gerações de amadores,
particularmente no tempo de Anastácia Mestrinho Salgado, atingiram elevado
nível, quer no âmbito do teatro quer no do folclore.
Não é possível em tão curto
espaço, esgotar o que foi a actividade desta bela aldeia, nem tão pouco fazer
aqui a sua história. Também não era esse o nosso objectivo. Procuramos, acima
de tudo, fixar-nos na figura de mestre António Bento, o homem que fez as botas
que mais nos encheram de orgulho.
Muito fica por dizer, mas é
tempo de acabar,
Ah! Esquecemo-nos de um
pormenor. O borrego estava uma delícia!
Até à próxima
Vitor Guita
Publicado in “Montemorense” Abril 2015 – transcrição autorizada
pelo Autor
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