quarta-feira, 4 de março de 2015

ORELHUDOS do CARAÇAS - Uma rubrica de A.N.B.

Introdução:
Incondicional apreciador da escrita e dos temas abordados pelo A.N.B., não posso deixar de tecer algumas considerações a propósito do texto que se segue.
Um misto de emoção e de saudade se foi apoderando de mim à medida que avidamente procedia à leitura deste relato a propósito de um familiar que me foi tão querido e a quem tanto fiquei a dever.
Além de meu tio, o Zé Luís foi um amigo do peito, um confidente, um pronto-socorro sempre presente ao menor sinal de alarme.
Muitas peripécias vivemos em conjunto, muitas horas de alegria e alguns momentos de sofrimento.
Partiu para sempre há relativamente pouco tempo. Se nasceu pobre, pobre desceu à terra, mas enquanto permaneceu entre nós nunca deixou de gozar a vida e principalmente de usufruir do maior prazer que desde sempre o acompanhou e marcou para toda a vida: o vício do jogo., responsável por tantos desequilíbrios na sua vida.
Fez questão de ser sepultado no Alandroal, terra que o viu nascer, que nunca esqueceu e de que tanto gostava.
«Tio Zé Luís, o elogio fúnebre que tanto merecias, e que não te foi feito, aqui fica elaborado por um amigo comum, que encontrou as palavras certas, que eu tanto gostava de te ter dito na altura em que de ti me despedi para sempre».
Obrigado TOIZÉ
Chico Manuel

                                                ORELHUDOS  do CARAÇAS  

                                      “Um Militar Civilista”


i)
Dado que não é, naturalmente, concebível uma identificação absoluta entre o vivido e o recriado pela arte da escrita, temos de começar este retrato e a lembrança de um Amigo assim:
    “Longas e animadas foram aquelas tardes de conversa aos domingos no Café Funchal (Madeira) onde regularmente se encontravam três alandroalenses, o militar-Sargento Zé Luís Ramalho, o Joaquim Palha e o ANB operador de reserva dos correios”.
Debatíamos, de alto a baixo e ao pormenor, tudo o que tivesse nome, sabor e parecenças do Alandroal: os amigos, as pessoas, as aventuras, as peripécias e o que demais houvesse de falar e só parávamos para aí… na “quarta invasão francesa. Isto pelos finais dos anos sessenta (69/70).

Éramos «três alandroais» num só vivendo na Madeira e no coração do Atlântico onde, aliás, também vivia em Câmara de Lobos, a Mariana, irmã da D. Aurélia, cunhada do Alexandre Recto.
O que nós mais queríamos reviver e ir mantendo era a cena dominical de estarmos, à conversa, três cúmplices alandroalenses, «em humoradas charlas orais» e sinfonia perfeita com a maneira de ser e de estar e a nossa antiga e reforçada “mística”.
Depois vinha facilmente ao de cima a narrativa encantatória, divertida e muito engraçada sobre certas figuras singulares e alguns figurões emblemáticos da nossa terra. Os importantes e os desimportantes; os pobres, os remediados e os ricos; o Zé Gato e o Zé mau olho. Isto para não falar - mui dignamente - dos Zés Trinta e Mira ou do clã dos Zés belos. Ou outros…
Acabávamos a tarde, invariavelmente, enredados «numa caldeirada do caraças»  e com as tripas poucos limpas após uns bons tintos que, o Zé Luís, fazia firme questão de ser da Vidigueira. Custasse o que custasse. Assim isto foi e era passado, mês após mês, na Madeira.

ii)
Mas quem era e quem foi afinal o militar civilista Capitão Zé Luís?
Porte alto e discreto tinha, em meu entender, uma personalidade apaziguadora e luminosa mais virada para dentro de si mesmo do que para grandes exteriorizações.
A mim, por exemplo, chamava-me “o Toizé” e com ele  debatemos por diversas vezes o papel do Prémio Nobel da Paz, Ramos Horta, que com Xanana Gusmão, protagonizaram a independência timorense e que o Zé Luís conhecera bem quando esteve em serviço militar em Timor Lorosae. Era por conseguinte um bom conhecedor de certos assuntos de relações internacionais daquela área indonésia dita do terceiro mundo.
Da Madeira até Timor passando por Évora, foi fazendo da sua vida uma “espécie de viagem poética” saída da fornada de seis irmãos e, por vezes, mais nocturna do que diurna. Ele que tinha começado, em miúdo, no Alandroal como humilde e simples ´Aguadeiro ao domicílio`.
Em Setembro, regressava sempre às raízes e origens da sua terra para retemperar as saudades e para perceber os motivos que o tinham levado por esse mundo fora. Nessas ocasiões falávamos bastante sobre questões profissionais.
Obviamente tinha uma relação especial e profundamente comunicativa com o sobrinho direito Francisco. Eram relações muito fortes e quase umbilicais que criaram e abriram espaço para quase tudo o que dois homens, ainda jovens, podiam fazer naquela altura da vida tais como:
- aventurarem-se em desejos solidários e solidões conjuntas;
-  desbastarem assados pascais na tasca do Eduardo;
- incursões pré- combinadas a…;
-« respeitáveis mulheres» partilhadas;
- jogatanas cúmplices de poker e de lerpa na SARA;
- lucros e prejuízos do jogo divididos no dia seguinte;
- espaços da cidade e de diversão do cais de Lisboa ao Cais do Sodré vividos furtivamente e a meias.
Ou seja, eram dois “eus” solidários numa planta só, por vezes, invisível e imaterial mas sempre partilhada e mutuamente marcante (aqui sei do que falo porque com o meu vivo Tio António, o da BASS, as coisas também se passavam assim).
Dele, do civilista militar, posso talvez dizer que “nunca fez uma coisa que não quisesse fazer” e que, mais do que ser uma pessoa com contradições com vícios e virtudes, nunca deixou de ser um Homem intenso que continha e praticava várias multiplicidades. Verdade e honra seja feita a este indomável percurso de vida.
Se estou certo nesta análise de uma pessoa de que gostava bastante, diria também que, o Zé Luís, era um homem bom, e um generoso filho do Alandroal, dotado de grande tolerância para com os outros.
Um “passageiro da vida” para quem uma boa e arriscada «jogatana de poker» eram um bocado o sal e o tempero libertador da sua vida.
iii)
Em resumo, pelo que pudemos conviver e apreciar no «civilista e capitão Zé Luís Ramalho» que tivemos sempre como um bom amigo, nos momentos certos, do nosso início de migrantes ilhéus, concluímos dizendo que sempre se fez à vida e ao mundo de dois modos.
Um oriental, solar e aberto às dificuldades de quem vinha e veio do nada; o outro ocidental, interior, porventura ultimamente com uma vitalidade anímica enfraquecida pelo cansaço urbano de uma vida que, entretanto, acabou por falecer apenas há uns dois/três meses (não tenho comigo a data exacta).
Talvez, por isso, uma das suas compensações e sortilégios possíveis estivesse onde sempre esteve e onde só poderia estar: numa paixão sem limites definíveis pela poker e que, ainda agora, estará novamente pronto a jogar como se, de um derradeiro gozo e lance original, ganhador ou perdedor, se tratasse.
Honra lhe seja feita, Zé Luís!
Porque se lá no céu «o calor da vida» deixou de ser o que era e Deus tem, de facto, mais em que pensar do que sentar-se à mesa consigo à frente de um pano verde… para mais uma saborosa jogatana até às tantas.
A vida terrena, no Alandroal e na Tapada das Caraças, essa também já deixou de ser o que era. A rua e “o oráculo” mantêm-se mas a verde mesa da Sara foi-se!  
Melhindaores saudações

    António Neves Berbem
        (4/Março/2015) 

Ps: Endereço a recordação deste texto à Família, e aos sobrinhos Francisco e Maria Jacinta… Flor(l)

2 comentários:

Anónimo disse...

Conheci bem o Capitão Ramalho. Fui colega dele em Cavalaria 3 em Estremoz.
Não sabia que tinha falecido. Foi um excelente colega.

Sargento Vieira

Anónimo disse...


A MINHA HOMENAGEM A TODOS OS ALANDROALENSES AQUI MENCIONADOS E QUE JÁ PARTIRAM...

Relativamente aos encontros dominicais no café Funchal, creio que, no que diz respeito ao ANB e JOAQUIM PALHA, os mesmos não seriam só no citado café, dado que, o ANB, residiu, durante muito tempo, na casa de Joaquim Palha...
Certamente houve esquecimento de mencionar este pequeno pormenor...