terça-feira, 31 de março de 2015

MEMÓRIAS CURTAS - Rubrica mensal do Prof. Vitor Guita, onde se recorda o passado de Montemor

Com o aproximar da Páscoa, a vila tornava-se mais doce. Éramos frequentemente atraídos pelo cheiro que saía das padarias, das pastelarias e mesmo das casas particulares. Nalgumas delas confecionavam-se bolos e doces para venda ao público, independentemente da época do ano.
Se recuarmos 50 0u 60 anos, o alto da Rua Nova e a Travessa das Pedrozas constituíam, porventura, o lugar mais açucarado de Montemor.
Lá bem no cimo, onde a rua se alarga, situava-se a casa da Palmira Parreirinha, considerada uma das melhores doceiras da terra. Muitos foram aqueles que não resistiram á sedução dos bolos e doces de ovos feitos pelas mãos da D. Palmira. Mãos de fada!
Depois, bastava virar a esquina e, numa das primeiras portas da Travessa das Pedrozas, habitava Bernardino Romeiras, padeiro de profissão na antiga Padaria da Ceres.
Após uma suada noite de amassadura, dormidas umas horas, o amigo Romeiras lançava-se, em casa, ao fabrico de fuzis, suspiros, bolos brancos, enxovalhadas e outros bolos. Uma vida de trabalho! A família era numerosa. Dizia-nos há dias, um dos filhos mais novos que, apesar da abundância de guloseimas lá em casa, poucos eram os bolos que lhe passavam pela estreita goela. O fabrico era para governo da vida.
Os bolos eram inicialmente cozidos no forno de um fogão a lenha. Mais tarde, vieram o gás e uma ampla mesa de mármore, que representaram uma considerável melhoria nas condições de trabalho.
Foram várias as gerações de montemorenses que se acostumaram a comprar bolos a Bernardino Romeiras. A hora do lanche era muito concorrida. Nos escritórios, nas repartições, sempre que o boleiro aparecia, era um festim. Nos últimos tempos, o fabricante e vendedor de bolos recorreu à vida de cauteleiro. Os anos não perdoam! Os números da sorte vieram substituir os fuzis cobertos de calda de açúcar, os suspiros e outras gulodices. À mistura com o pregão da lotaria, vinha de lá um toque de corneta e uma quadra de sabor popular. 

Mas, continuemos a nossa rota recheada de açúcar, farinha, manteiga, ovos, canela e mais uns quantos ingredientes que estão na base de muitos bolos e bolinhos que fizeram (ainda fazem) as nossas delícias. Bolos para todos os gostos. Uns mais frágeis, estaladiços; outros mais consistentes ou mesmo secos, bons para molhar no chá ou no café. Quase todos a saber a infância!
Também na Travessa das Pedrozas, em frente à casa de Bernardino Romeiras, morava o conhecido pasteleiro Luís Mira de Oliveira. À distância de um bom par de anos, ainda conseguimos visualizá-lo com o seu avental branco ou, rua fora, com o cesto de verga, distribuindo os seus maravilhosos bolos. Ah! Aquelas mil folhas!
Embora os dois fabricantes vivessem a escassos metros um do outro, os negócios não conflituavam. Luís de Oliveira dedicava-se mais à pastelaria fina: pasteis de nata, palmiers, bolos de arroz, assim como trouxas de ovos, sericaias, etc… Era ele que abastecia boa parte dos cafés e pastelarias da vila que não tinham fabrico próprio. Era o caso do Bar Alentejano, de alguns cafés que já existiam na Avenida, entre outros.

Não muito longe da sua casa, ligeiramente mais acima, abriu portas a Pastelaria Agil, propriedade de António Joaquim Alvarez de Gião, popularmente conhecido por Gião da Farmácia. Como se pode supor, o estabelecimento era abastecido pelo vizinho  Luís de Oliveira. Recordou-nos a Biu, que ali trabalhou, que a clientela mais assídua era constituída por funcionários públicos e também por bancários que trabalhavam no BESCL, mesmo ali em frente. Ao fim de poucos anos a pequena loja virou drogaria.
Mas voltemos à actividade do nosso pasteleiro Luís. Da interessante conversa que tivemos com a sua filha Adalgisia de Oliveira Batista, ficámos a saber que uma das grandes especialidades da casa eram os bolos de amêndoa, com as mais diversas formas e cores: azeitoneiras, pães, linguiças e outros motivos regionais. O Café Arcada, em Évora, era um dos grandes clientes deste tipo de doçaria. Aliás, terá sido na capital alentejana, com um tal sr. Gomes, que Luís de Oliveira aprendeu boa parte do seu métier.
A fabricação de bolos, para além de ser uma arte, implica esforço e uma valente dose de paciência, enquanto se preparam, enquanto cozem, enquanto se enfeitam, enquanto solidificam.
À falta de um grande forno lá em casa, a cozedura de bolos tinha lugar na padaria das irmãs Narcisas, cujo balcão dava para a Rua das Pedras Negras. Lembranças que ficam.
É curioso verificar como uma conversa à volta de bolos, pode evocar tantas e tão longínquas recordações.
O nosso roteiro dos lugares açucarados derivou, entretanto para uma das mais populares Ruas de Montemor: Demos um salto até à Ruinha, à casa onde viveu Francisco José Mareco.
Quem olha para as baixas e estreitas fachadas não imagina a fundura das habitações, a que se juntam ainda espaçosos quintais. Fomos recebidos por Antónia Mareco, que nos falou do pai com um misto de orgulho e de ternura. “Era tão bom o meu pai!”. O Chico Mareco, como era geralmente tratado, trabalhou como padeiro na Rua do Poço do Passo e, mais tarde, no Hospital Infantil de S. João de Deus. Pelo meio, meteram-se uns negócios de venda ambulante de louça.
A nossa anfitriã recordou o tempo em que, ainda menina, se queimava inadvertidamente na pá do forno, e o pai a mandava por, de imediato, as mãos no sal.
Os bolos, preparados em casa e cozidos no forno do vizinho Crisanto, eram vendidos no mercado local ou, muito frequentemente, no mercado de Évora. Manhã cedinho, era vê-lo a caminho do mercado com duas grandes cestas de bolos. A partida era às sete. Às dez, já não havia nada para vender. Num abrir e fechar de olhos, o Chico Mareco despachava queques, bolos de côco, bolos de manteiga, tudo o que houvesse. E sempre com os seus gracejos. Onde ele parava, era uma festa!
O amigo Mareco tinha, acima de tudo, alma de artista. Era um gigante em palco. Ficaram na memória dos montemorenses muitas das suas interpretações, nomeadamente os divertidos monólogos que maravilharam o público da Carlista e de outras salas de espectáculos.
Antónia Mareco guardou, até à pouco tempo, o “fatinho de marujo” que o pai costumava envergar no divertidíssimo Exame do meu Menino.
Bem! Está na hora de fecharmos o pano. Apetecia-nos ainda continuar este manjar de recordações. Gostávamos , por exemplo, de revisitar as broas das irmãs Talhadas, os inconfundíveis suspiros do Reinata, a recheadíssima Pastelaria de Francisco Barros ou, mais recentemente, o pão de rala e as lampreias de ovos da D. Amélia. Ficará para uma próxima oportunidade.
Uma doce Páscoa e até breve,
Vitor Guita
Março -2015
Transcrição devidamente autorizada pelo Autor da publicação in Folha de Montemor





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