segunda-feira, 28 de julho de 2014

VASCULHAR O PASSADO - Habitual cronica escrita por Augusto Mesquita

                                                  Safira  - a aldeia que não existe


Safira tem placa toponímica bem visível da E.N. 4, que anuncia uma aldeia que não existe. Depois de percorrer 4 km por caminho alcatroado sofrível, que termina na desaparecida aldeia, o visitante chega ao local e fica perplexo, pois é acolhido pelos destroços do que foi a antiga taberna e mercearia, e das habitações dos proprietários do espaço comercial. Deste local, observa-se a antiga igreja do século XV, que irá subsistir até ao desaparecimento da última pedra, a casa do padre, a casa do sacristão, a antiga Junta de Freguesia, o cemitério da aldeia recentemente limpo e caiado, e a vandalizada escola primária com 148,40 m2 de área coberta, e 1.815,60 m2 de área descoberta, desactivada no ano lectivo de 1963/64, que o município tentou vender recentemente por um valor base de 22.025,96 €.
            Dar o nome de Safira a uma aldeia, denota que a povoação também era considerada uma “pedra preciosa”.
            Segundo Mestre Túlio Espanca, a igreja, edificada em sítio altaneiro e pitoresco, dominando a escassas centenas de metros a ribeira do seu nome e de vetusto casario arruinado na linha da frontaria, olha ao ocidente, com seu adro e murete donde rompe a base do cruzeiro de granito rudemente esculpido, sobrepujado por cruz de ferro, singela, do tipo seiscentista.
            A primitiva construção religiosa do título de Santa Maria de Safira, remonta ao bispado do infante-cardeal D. Afonso, filho de D. Manuel, do qual subsistem, da abside, no terreiro, servindo de bancos de repouso, uma formosa chave de pedra, de secção cilíndrica, cordiforme, ornada pela Cruz da Ordem de Malta, e duas mísulas prismáticas, manuelinas (uma sobreposta à pia de água benta, enconchada, visível na capela-mor. Recebeu várias obras na época quinhentista: como resultado da “Visitação de 1534”, teve novo forramento de madeira na nave; o primitivo alpendre, englobou-se no vão do templo que se ampliou em 1573, e fez-se outro de alvenaria, quatro anos depois, e em 1579 abriu-se uma porta travessa na banda do sol. Sofreu ruína grave provocada pelo terramoto de 1 de Novembro de 1755, com fendas no arco do santuário e corpo da nave e queda do campanil. Restauros hodiernos de 1874 (a data aposta na testeira externa do santuário) e outros terminados em 20 de Outubro de 1903, confirmam obras volumosas que, embora bem intencionados, desfiguraram o templo quinhentista.
            Os alçados laterais estão protegidos por gigantes de alvenaria do sistema tradicional, estando um deles decorado por pequeno relógio de sol, marmóreo e de secção cúbica.
            A fachada axial tem alpendre de três arcos redondos, de alvenaria escaiolada; o campanário levanta-se no vértice do frontão de enrolamento, com cruz de mármore e pequeno registo de azulejos de esmalte branco e decoração azul, representando “S. Vicente Ferrer” envolvido pelo rosário, com a data de 1483-1849.
            Sino, de bronze, cronografado de 1894, ostentando o emblema da Santa Hóstia, relevado. Portada vulgar, com ombreiras de granito e porta de dois batentes de madeira almofadada e pregueada, antiga.
            O interior acusa, com gravidade, os atropelos cometidos na sua arquitectura antiga pela operosidade das extintas irmandades. De planta rectangular, a nave, é coberta por caixilharia de três esteiras de madeira levemente fasquiada, vestígios da obra setecentista; os prospectos estão revestidos de aparelho róseo que oculta composições geométricas e de albarradas.
            Púlpito quadrangular, de base marmórea, envieirada e caixa de pau-santo, apilastrada, de tremidos e colunelos de bolachas discoides, de alvores do séc. XVIII.
            O Baptistério, muito pequenino, tem cúpula de meia laranja assente em pendentes lisos; pia de pedra, cilíndrica, rudemente esculpida. De fins do quinhentismo, parece ser a pia de água benta, de mármore branco, também sem adornos, mas de configuração dodecagonal: assente em colunelo de calcário.
            No corpo da nave conserva-se, ainda, ao modo campesino, a mesa-arcaz dos mesários da Confraria de Nossa Senhora do Rosário, almofadado e cachaço com enrolamento, ornamentado pela tabela pintada da padroeira.
            Os dois altares colaterais são desenhados e executados em talha dourada, no estilo rococó e dentro do seu período decadente, ligeiramente desiguais, com elementos envieirados, palmares, voluta e grinaldas anunciando a arte neoclássica (último quartel do séc. XVIII).
            O do lado do Evangelho é dedicado a “Nossa Senhora do Rosário”. A imagem encontra-se metida em maquineta envidraçada: é de roca, vulgar. Sobre a banqueta, existem esculturas antigas e da escola populista: “S. Brás” (alt. 60 cm) e “S. João Batista” (alt. 84 cm), ambas retocadas por imperitos restauradores. Restos de castiçais de latão, alguns do tipo seiscentista. Em 1758 possuía mais: “Santo António, “S. Sebastião” e “S. Barnabé”, todos de madeira dourada.
            Na capela das “Almas”, paralela e coetânea, venera-se em edícula envidraçada, “S. Miguel Arcanjo”, imagem bem estofada e policromada, de madeira, com características arcaizantes do reinado de D. João V. Tem sacrário. Mais duas esculturas, igualmente de feição popular e de lenho colorido, redouradas e purpurina, se expõem no altar: “S. Pedro” e “Santo António”, que medem, respectivamente, de alt. 95 e 90 cm. No séc. XVIII estava enriquecido com “S. Vicente Ferrer”, “S. Neutel”, “S. Bartolomeu” e “S. Brás”.
            Capela-Mor – De planta rectangular, tem tecto redondo, de abobadilha e alçados caiados de branco, segundo obra volumosa e infeliz de 1874, que lhe destruiu a primitiva abside de arquitectura manuelina. O retábulo é daquela época, de estuques marmoreados, compondo-se de três nichos fundeiros, envidraçados e de molduras redondas, sem qualquer interesse artístico, as quais foram vazadas, com maior sobriedade, no ano de 1592, período em que se destruiu a imagem primitiva de “Nossa Senhora de Safira”, pelo facto de se encontrar completamente gasta e imprópria para o culto. No axial, expõe-se a titular “Nossa Senhora da Natividade” – e lateralmente, “Santa Bárbara” e “S. Sebastião”, esculturas de tamanho sensivelmente igual, todas de madeira mas estofadas ao moderno, o que lhes alterou, em absoluto, o carácter e beleza originais. Estes nichos estiveram decorados por “S. Pedro” e “S. João Batista”.
            Sobre a banqueta, vulgaríssima, existe um crucifixo de marfim, setecentista e de boa factura, mas também restaurado, e as imagens de lenho purpurinado, “S. José” e “S. Pedro”.
            Dimensões do templo: nave – comp. 16.00 x larg. 5,95 m; capela-mor – fundo 6,10 x larg. 4,40 m.
            A cerca de 200 metros da igreja, na baixa do lado oriental, existe o poço do aldeamento, que tem cobertura de tijolo, triangular, e no fundo da parede pequeno registo cerâmico, do séc. XIX, policrómico, figurado por “S. Vicente”, mártir de Valência, empunhando o galeão de três mastros, e envolvido por pórtico de grinaldas de flores.
            No ano de 1758, na sequência das Memórias Paroquiais, divididas em três partes, povoações, serras e rios, num total de 60 perguntas, o Padre Tomás de Vasconcelos Camelo, respondendo ao questionário remetido pelo Arcebispo de Évora D. Miguel de Távora, escrevia: “… tem esta freguesia 57 propriedades e nelas se incluem 120 fogos onde residem 578 pessoas”. O restante documento reflectia sobre as actividades agrícolas e pastorícia presentes na aldeia, a existência de uma fábrica de cal e ainda duas minas de arsénio, na Herdade da Gouveia de Baixo, uma de cobre e ferro na Herdade da Caeira, e ainda, os pagamentos das rendas e os danos causados pelo terramoto. O texto integral pode ser lido na revista de cultura “Almansor” (n.º 5 – 1.ª série).
            Através da Carta de lei de 25 de Abril de 1835 (Divisão Administrativa do País), Safira atinge o estatuto de Freguesia.
            Safira foi o título nobre atribuído por decreto de lei do Rei D. Luís I no ano de1886, a favor de Augusto Dâmaso Miguens da Silva Ramalho da Costa, 1.º Visconde de Safira, a quem pertencia as terras da aldeia. Posteriormente, foi elevado à Grandeza, como 1.º Conde de Safira, por Decreto de D. Luís.
            Um século depois de ser criada a freguesia de Safira, o Código Administrativo de 1936 desfez 10 freguesias no nosso concelho: Landeira, Represa, Santa Sofia, Santo Aleixo, São Brissos, São Gens, São Geraldo, São Mateus, São Romão e a mencionada Safira.
            Esta decisão politica, a juntar à falta de condições de habitabilidade e à precariedade do árduo trabalho agrícola, que era executado manualmente, com meios antiquados, e de sol a sol, foi a morte anunciada para a maioria das extintas freguesias.
Augusto Mesquita

Cedido pelo Autor após publicação no mensário Folha de Montemor – Julho 2014



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